Moacir Beggo
São Paulo (SP) – Aos gritos de “D. Paulo presente! Agora e sempre!” foi aberta, neste sábado (21/7) a Exposição “Dom Paulo Evaristo Arns: 95 anos”, em homenagem ao Cardeal de São Paulo que morreu em dezembro de 2016. O ex-ministro da Justiça e membro da Comissão de Justiça e Paz (CJP), José Gregori, abriu a exposição exatamente dentro de uma cela, representando uma prisão da ditadura militar. Um show de hip-hop ao lado do Centro Cultural dos Correios, no Vale do Anhangabaú, região central da capital paulista, prejudicou a abertura do evento e fez com que os organizadores mudassem para este espaço mais silencioso. Devido ao barulho, o Coro Luther King só conseguiu apresentar uma música diante do grande painel da Catedral da Sé na entrada do prédio.
“Para mim, estar aqui dentro dessas grades tem um significado muito grande. A gente relembra que D. Paulo foi a voz do protesto e da redenção do Brasil e não há cerimônia mais representativa do que estar entre as grades da cadeia onde estavam os jovens frades dominicanos”, disse o ex-ministro Gregori, ressaltando o privilégio de viver em um Brasil tão desigual, com tantas diferenças, tantas incertezas, mas tendo ao lado um profeta, um apóstolo, que acreditou naquilo que vinha do coração, da fé e da oração. “Ele traduziu isso não em palavras, não em exortações, mas em coisas práticas. Foi por isso que, em várias vezes, sem ser condenado, esteve atrás das grades para dar esperança a quem precisava, para mostrar que a justiça na terra se faz, que não há motivo para desesperanças, não há motivo para desânimo, que o bem sempre acaba prevalecendo”, observou, contando que teve o privilégio de ser integrante da Comissão de Justiça e Paz criada por D. Paulo. “Às vezes, eu chegava cedo às reuniões e a sua secretária me dizia que ele estava na capela. Nunca vi um sacerdote orar com tanto fervor, com tanta comunhão. De lá, ele tirava o ânimo, a fortaleza”, recordou.
“Ele fez justiça com justiça, fez a paz com paz, fez a conciliação com conciliação, fez a democracia com democracia. Por causa da fé, ele se tornou o vitorioso e hoje está sendo homenageado, está sendo objeto da dedicação extraordinária desse grupo que organizou a exposição. Mesmo em meio às dificuldades, este grupo conseguiu fazer essa belíssima exposição. Nós estamos todos gratificados”, elogiou. No final do mês, quando os organizadores lançaram o projeto na Assembleia Legislativa, um grupo de pessoas, defensoras de uma “intervenção militar”, ameaçou paralisar a exposição.
A curadoria é das jornalistas Evanize Sydow e Marilda Ferri – autoras de biografia sobre Dom Paulo –, além de Maria Angela Borsoi, secretária do Cardeal durante décadas, e Paulo Pedrini, da Pastoral Operária. Evanize falou em nome do grupo e lembrou que a equipe reuniu mais de 60 pessoas, trabalhando dia e noite para que o evento desse a oportunidade de apresentar, especialmente para jovens, de forma lúdica e interativa, conceitos importantes para uma sociedade mais justa, com respeito à democracia e aos direitos humanos, que foi a luta de Dom Paulo. A curadora fez os agradecimentos às entidades que ajudaram o projeto, entre eles a Missionszentrale dos Franciscanos e esta Província da Imaculada Conceição.
O guardião do Convento São Francisco, Frei Mário Tagliari, representou a Província da Imaculada e o Ministro Provincial, Frei Fidêncio Vanboemmel, no evento. “É uma exposição ampla que dá destaque ao serviço da Igreja Povo de Deus, na defesa dos direitos humanos, na defesa da liberdade, na construção de uma sociedade mais justa, fraterna, solidária, mais igualitária. No tempo da ditadura, sem dúvida, D. Paulo foi um grande profeta, denunciando as injustiças com vigor e coragem, sem deixar de anunciar um mundo melhor possível”, disse o confrade de D. Paulo. “No seu ministério, como bispo, mas também desde frade, ele fez a opção para acolher todo mundo, de modo especial os empobrecidos. Não os pobres, mas os empobrecidos, pois isso significa que existem responsabilidades pelos que vivem empobrecidos, aqueles sem voz e sem vez”, ressaltou Frei Mário.
O guardião da segunda casa de D. Paulo ficou impressionado com o espaço que retrata a tortura da ditadura militar. “Eu nunca tinha me deparado com instrumentos de tortura. E é uma coisa tão rústica, tão chocante de se ver e tão cruel imaginar o ser humano aí, amarrado naquelas correias e sendo torturado”, lamentou Frei Mário. Em uma das salas se pode conferir a atuação do cardeal durante a ditadura. Nesse mesmo espaço se encontra uma versão gigante do livro “Brasil: Nunca Mais”, lançado em 1985, com denúncias e documentação sobre torturas de presos políticos, um marco do movimento por justiça e verdade. Em outra área se pode ver toda a crueldade na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, em Perus, onde, em 1990, foram descobertas mais de mil ossadas, parte delas de desaparecidos durante o regime autoritário.
“Eu penso que é muito importante hoje, depois de ter passado esse tempo, que as pessoas e jovens possam ver isso e não caiam na onda dessa ideologia de direita que quer apagar isso da memória brasileira, dizendo que isso não aconteceu. Então, esse é um resgate fantástico e oportuno. Eu vivi esse período e mesmo assim fiquei chocado. Imagine para os jovens que não viveram essa fase! Isso deverá ser uma coisa muito intrigante e se espera que ajude a questionar: será que é esse Brasil que a gente quer? Um Brasil de violência, que dissemina ódio, que coloca as pessoas umas contra as outras, que passa por cima de todos os valores e direitos fundamentais do ser humano? E D. Paulo, sem dúvida, foi o profeta no seu tempo e é hoje também”, frisou o frade.
Fernando Altemeyer Junior, assistente doutor da PUC-SP, trabalhou durante dez anos com D. Paulo na Comunicação da Arquidiocese. Para ele, ver os instrumentos de tortura nas salas escuras, “ofende-me profundamente”. “Meus avós e parentes viveram os horrores da 2ª Guerra Mundial e quando entro nesse local não gosto. Me faz mal. Depois tem as ossadas de Perus, uma representação de esqueletos. Então, você fala: ‘Nossa! Que feio! Gente machucou gente sentada nessa cadeira. Como é possível o ser humano fazer isso? Depois você atravessa um pequeno corredor e passa por um espaço de representação do povo de rua, que é o solidéu do Papa Francisco, e entra na ala que é da esperança. Ali tem o Corinthians, time de D. Paulo. Então, a história do Brasil traz isso: dor, tristeza e esperança, a palavra-chave de D. Paulo. Uma bela exposição, singela – não é rebuscada -, mas eu fico com a parte final, a parte da esperança. Sem negar o que existiu, porque povo sem memória vira uma bobagem. Passar de uma dor para a esperança, é possível isso? D. Paulo mostrou que é possível. Hoje, precisamos de outras pessoas que façam como D. Paulo”, pediu.
Nesta exposição há uma linha do tempo com temas sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que está completando 70 anos. Em um vídeo, os 30 artigos do texto são lidos por 30 pessoas, incluindo refugiados, moradores de rua e artistas, como Criolo, Martinho da Vila e Paulinho da Viola. No final do amplo salão, as citações ao Corinthians, time de coração do religioso franciscano, com fotos e depoimentos de ex-atletas como Basílio e Casagrande.
O grande destaque, que chama a atenção do visitante logo na entrada do prédio, é uma reprodução de aproximadamente 400 metros quadrados da Praça e da Catedral da Sé, com representação de alguns momentos históricos ocorridos naquela região central. Entre esses fatos, estão as missas por Alexandre Vannuchi, Vladimir Herzog, Santo Dias e Manoel Fiel Filho, todos assassinados pela ditadura. A mostra lembra ainda as missas de 1º de Maio. A exposição inclui depoimentos e imagens inéditas, em vários ambientes.
A Mostra poderá ser visitada até 23 de setembro, de terça a domingo, das 11h às 17 horas. A entrada é franca. Também nesses dias, às 14h30 e 15h30, será encenada a peça “Lembrar é Resistir”, que sofreu algumas adaptações desde que foi apresentada pela primeira vez no final dos anos 90, na antiga sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS), o braço oficial da política de terror do Estado, que serviu de centro de tortura.
Segundo Gregori, o apostolado de D. Paulo nos deixou valores eternos, como a primazia dos direitos humanos, a reconciliação da condição humana, a vida em comum, mais solidária, no sentido de um compensar a fraqueza do outro. “Esses valores continuam, porque é um dos mistérios da natureza. Por que a humanidade não nasceu para o bem e por que o bem demora tanto a chegar? Mas nós que temos fé, temos que acreditar que ele virá. E não virá espontaneamente no bico da cegonha. É preciso luta, mas uma luta pacífica, que joguem as pessoas para uma mobilização do bem e não umas contra as outras. Foi o que D. Paulo fez”, completou.
Serviço
Exposição Dom Paulo Evaristo Arns: 95 anos
Data: de 21 de julho a 23 de setembro de 2018
Horário e dias: visitação das 11h às 17h, de terça a domingo
Entrada franca
Local: Av. São João, s/n, Vale do Anhangabaú – Centro, São Paulo/SP
FONTE: FRANCISCANOS.ORG