SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO

SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO

01/07/2018

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: At 12,1-11; Sl 33 (34); 2 Tm 4,6-8.17-18; Mt 16,13-19

Tema-mensagem: Que a fé dos Apóstolos Pedro e Paulo, regada a preço de sangue, reacenda em nossos corações o ardor apostólico originário de “uma Igreja em saída”.

Sentimento: Alegria pela bem-aventurança da confissão da fé.

Introdução

Celebramos hoje, os apóstolos que nos legaram “as primícias de nossa fé” (Ant. de Entrada): São Pedro e São Paulo. A pregação, testemunhada pelo martírio desses varões ilustres, foi tal que se tornaram colunas de todo o edifício da Igreja e luminares para toda a história da “cristidade” do cristianismo. Cristidade é a fé, o vigor da afeição colhidos e recolhidos ao longo dos anos de convívio com Jesus Cristo. Ela é, portanto, a essência do cristianismo; é, enfim, o ardor do Evangelho de Jesus Cristo encarnado. Pedro e Paulo, cada um ao seu modo, testemunham o fogo do mesmo Espírito que nos faz crer e crescer em Jesus Cristo e na Igreja apostólica, pois “na boca deles ressoa sempre o primeiro anúncio: “Jesus Cristo te ama, deu a sua vida para te salvar e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer e libertar” (EG 164).

  1. Na confissão de Pedro a nossa confissão

O evangelho da solenidade de hoje, tirado de Mateus, narra primeiramente a confissão de Pedro em favor de Jesus e, logo em seguida, a confissão de Jesus em favor de Pedro.

  • O diálogo de Jesus

O evangelho começa narrando uma viagem estranha: Jesus leva os Apóstolos para um lugar apartado, fora da Judeia e da Galileia, para a região de Cesareia de Filipe[1]. Num primeiro momento, curiosos, perguntamos: por que levá-los para tão longe, fora dos limites de sua terra, além das crenças e tradições de sua gente, para o meio de estranhos e dos pagãos? Quando as pessoas, a exemplo dos enamorados, se retiram do público, se afastam da multidão quase sempre é porque tem algo de especial, íntimo a tratar, um segredo a dizer ou celebrar. Ali, bem distantes das pressões que eles viviam na Judeia e mesmo na Galileia, Jesus poderia fazer-lhes a pergunta mais importante e decisiva da vida deles. E, eles, por sua vez, livres e sem nenhum temor, poderiam responder-lhe o que pensavam Dele.

Antes de mais nada, porém, importa considerar a maneira como Jesus conduz esse encontro, sua admirável pedagogia: o caminho, o método da evangelização e da catequese cristã. Jesus não começa expondo direta, imediata e explicitamente, muito menos impondo a verdade acerca de sua pessoa. Mas, aos poucos, como abelha diligente e reverente, que vai se abeirando do néctar escondido e guardado no âmago da flor, procura despertar e fazer arder no coração daqueles rudes pescadores e publicanos uma afeição pura e um interesse gratuito pela pessoa Dele. Em segundo lugar, o que está em jogo não é um “quê”, um objeto, um ideal nem mesmo uma verdade, mas um “quem”, uma pessoa: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13).

A resposta dos Apóstolos revela que eles, de certa forma, embora de coração um tanto embotado e interesseiro, já estavam um pouco afeiçoados à pessoa de Jesus. Do contrário nem sequer teriam respondido. Por isso, disseram: “Para uns, João, o Batista; para outros, Elias; para outros ainda, Jeremias ou algum dos profetas”. Para o povo, Jesus era um profeta, um dos grandes, um homem que bem se podia identificar como pertencente à linhagem e à tradição dos grandes profetas. 

Entretanto, as opiniões populares sobre Jesus não eram suficientes para que os discípulos alcançassem e acedessem à identidade do Mestre, muito menos ainda que se fizessem seus discípulos, amigos, familiares e íntimos. A confissão de fé deles, portanto, para emergir, precisava ainda de outro apartamento, não corporal, físico, geográfico, mas sim de um apartamento intelectual, espiritual. A confissão de fé, o acesso à verdade de Jesus Cristo, só se tornaria possível quando os discípulos se apartassem, se desprendessem da confusão dos pareceres, das opiniões dos homens, do mundo a respeito Dele. Por isso, logo depois segue a segunda pergunta: “Vós, porém, quem dizeis que eu sou?”

  • A confissão de Pedro

Contudo, mesmo os discípulos, por si sós, não tinham ainda conseguido ver e saber quem era Jesus, este homem com quem eles andavam e que tinham por seu mestre. Para eles, Jesus seria alguém muito especial, singular, único, mesmo entre os homens que foram mais íntimos de Deus. Vislumbravam e pressentiam que Ele existia numa relação filial inigualável com Deus e cumpria uma missão ímpar, diferenciada de todos os outros profetas. E, não obstante este vislumbre, que se dava como um raio, que lampejante faz aparecer algo e, logo em seguida, o oculta, os Doze ainda não tinham alcançado uma consciência – um saber, uma sapiência – clara nascida de uma experiência pessoal a respeito da identidade de Jesus.

A confissão de fé, como tal, ainda não podia, assim, emergir, e, com ela, o conhecimento, o acesso à verdade de Jesus. Ela deveria emergir, justamente, da boca de Simão Pedro, que, fazendo-se porta-voz de todos, diz: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16, 16). Consideremos a resposta de Pedro: Jesus é o Cristo e não um Cristo, o Ungido e não um ungido. Este “o” faz toda a diferença. Aponta para a unicidade de Jesus. Ele é o único, o incomparável, o inefável. Não se pode compará-lo com nenhum dos justos e dos profetas dos tempos passados. Em vez de ser compreendido por eles, eles é que devem ser compreendidos por Ele, como também, depois Dele não haverá mais nenhum outro profeta, santo ou justo.

Um teólogo medieval, Rábano Mauro, considerou assim o admirável contraste nesta passagem do evangelho: o Senhor confessava a humildade de sua humanidade denominando-se a si mesmo como “Filho do Homem”[2] e Simão Pedro, confessa a sublimidade da eterna divindade de Jesus declarando-o “Filho do Deus vivo”.

Por sua vez, para São Jerônimo, os homens, enquanto tais, sempre têm uma opinião mundana sobre o homem Jesus e não poderia ser diferente; os Apóstolos, porém, ao conhecerem a natureza divina de Jesus, já não são mais simples homens, mas “deuses”. Ele parafraseia a pergunta de Jesus assim: “Vós, que sois deuses, quem dizeis que eu sou?”

Esta interpretação de São Jerônimo pode surpreender, por ser insólita. Mas não pode escandalizar um cristão, pois o próprio Pedro, na sua Segunda Carta (1,4) nos convida à gratidão pelo maior de todos os dons que nos foram concedidos com o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo em nossa carne: “que nos tornássemos comungantes da natureza divina”, deificados pela graça. 

Ser deificado pela graça é tornar-se Deus com Deus, em Deus, por e para Deus, na obediência (ausculta e abertura) a Ele e sua Palavra, na docilidade ao seu Espírito, o que é totalmente diverso de querer ser Deus contra Deus, como sugere a serpente na história dos primeiros pais, no Gênesis. Só podemos conhecer Jesus segundo o Espírito e a divindade se formos inspirados pelo Espírito e deificados pela graça, na força da sua divindade. É o que nos recorda São Francisco quando diz que “é o Espírito do Senhor, que habita nos seus fiéis, quem por nós, recebe o Corpo e o Sangue do Senhor” (Ad 1).

1.3. Na confissão de Jesus a alegria da bem-aventurança de Pedro

A resposta de Jesus é muito significativa! Primeiramente, caracteriza Pedro com a mais expressiva qualificação que Ele próprio, Jesus, faz aos seus seguidores: “Bem-aventurado” (Cf. Evangelho das Bem-aventuranças). Bem-aventurado, indica a plenitude da felicidade, da alegria que nasce da experiência do encontro da graça com a boa vontade. Assim, toda a vez que a graça encontra um coração bem-disposto, uma vontade firme e denodada surge a bem-aventurança, nasce um bem-aventurado, isto é, uma pessoa feliz, realizada, plena, “satis-feita”. Era o que estava acontecendo com Pedro e seus companheiros naquele momento.

O pensador dinamarquês Kierkegaard, considerava, certa vez, o sofrimento de Jesus em face aos homens que dele se escandalizavam e que não conseguiam atravessar a prova do escândalo na direção da fé. Proporcional a este sofrimento era também a sua alegria, quando encontrava um coração que se abria à fé. Ele abria os braços e dizia: venha a mim! E os homens Dele fugiam, escandalizados, ou pela sua grandeza, ou pela sua pequenez (pois era Deus e homem). Por isso, quando Pedro confessa Jesus como o Cristo, o filho do Deus vivo, grande foi a sua alegria em poder declarar “bem-aventurado” a Pedro[3]. A alegria era recíproca. Em Pedro, porque pela graça estava frente a frente do próprio Filho de Deus vivo, em carne e osso e em Jesus porque estava diante de alguém que não apenas não se escandalizava mas cria Nele, no Deus humanado.

A graça da confissão de fé, o conhecimento do mistério de Jesus Cristo como “o Cristo”, o “Filho do Deus vivo”, provinha, portanto, de uma revelação do Pai “que está nos céus”, mediante o Espírito Santo. Não procedia da “carne e do sangue”, isto é, do humano, com seus saberes e ignorâncias, com suas forças e fraquezas, com suas alturas e abismos. Eis, pois, a confissão de fé de Pedro, que será a mesma de Paulo, que será a mesma de uma multidão de “filhos de Homem” que, ao longo da história, se tornam, por graça do chamado-seguimento, “filhos de Deus”, “comungantes da natureza divina”: “Bem-aventurados”.

  • Do nome Simão para Pedro

Em segundo lugar, a graça desta confissão de fé transforma Pedro por dentro, na raiz. Por isso, Jesus troca o nome que Pedro recebera dos homens, de seus pais e dá-lhe, Ele mesmo, um novo nome, como que dizendo: agora Pedro você não pertence mais aos homens, mas a mim.

Se o velho nome – “Shimon” (Simão) – que significa “o que ouve”, o “ouvinte”, enfim, o “obediente” é belo para um israelita, muito mais o será o novo: “E eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”.

O nome grego “Pétros”, que aparece no Novo Testamento, é uma tradução do aramaico “Kephá” (rocha, pedra) e significa, simplesmente: pétreo. Pedro torna-se pétreo para a Igreja, porém não por si mesmo, mas por estar firmado no fundamento da graça da sua confissão de fé. É esta que funda a Igreja, ou melhor, Pedro é pétreo por estar fundado na Pedra, n’Aquele que é o confessado dessa confissão: Jesus, o Cristo, o Filho do Deus Vivo.

Neste sentido, Agostinho comenta que o Senhor não disse “tu és pedra”, mas, “tu és Pedro”. Não a Pedra vem de Pedro, mas Pedro vem da Pedra. Isto é: Simão torna-se Pedro, pétreo, graças à Pedra, que é Jesus, a “Pedra angular” a quem ele confessou, reconheceu, como sendo o Cristo, o Filho do Deus vivo.

Isso é fundamental para entendermos o ministério petrino e a missão que o Papa tem na Igreja de Cristo como guardião da unidade dos discípulos, seguidores de Jesus. Provavelmente, foi a evidência desta co-pertença de Pedro à Pedra, que é Jesus, que manteve São Francisco numa obediência livre e ao mesmo tempo inteligente, firme e rigorosa em relação ao Papa, num instante em que, em nome da reforma evangélica do cristianismo, muitos pretendiam e de fato, por vezes, se dispensavam desta obediência. Escreveu ele, na Regra: “Frei Francisco, promete obediência e reverência ao senhor Papa Honório e a seus sucessores canonicamente eleitos” (RB 1,3)

  • Do poder das chaves e da promessa de Jesus

Junto com o nome novo e com a bem-aventurança, é dado a Pedro um ministério (serviço) especial expresso com a imagem das “chaves”. “Chave” evoca abertura e fechamento. Diz iniciação (entrada, acesso) e discriminação (diferenciação, discernimento). Chave abre e fecha, liga e desliga (ex.: num veículo). Ligar e desligar é como vincular, obrigar e resolver, absolver, dissolver[4].  Tanto o aspecto da abertura (iniciação) quanto o aspecto da discriminação (juízo, discernimento) remetem ao conhecimento. Era a partir daí que os Padres da Igreja interpretavam a palavra das chaves. Para São João Crisóstomo as “chaves” representam o conhecimento, que dá acesso ao mistério, e Rábano Mauro como o poder do discernimento.

É graças ao conhecimento (ciência, sapiência, iluminação), expressado na confissão de fé, que provém da revelação do mistério de Jesus como o Cristo, o Filho do Deus vivo, que Pedro assumiu o primado diante dos demais Apóstolos, e, com isso, a missão de ser pastor universal, guardião da unidade entre todos os que confessam a mesma fé. Esse é o múnus (ofício, obséquio) de Pedro que foi estendido ao bispo de Roma, o papa, o “servo dos servos de Deus”.

A Pedro também é dada uma promessa a respeito da Igreja: “As portas do Hades não prevalecerão contra ela”. “Hades”, em grego, diz o mesmo que “Sheol” em hebraico e “Infernus” em latim. É a força ctônica, subterrânea, da morte. É uma força que devora, traga, para o seu abismo negativo, para o nada aniquilador, o que é, cresce, vive na terra, da terra, sob o céu. O desafio do homem que vive sobre a terra é o de não ser devorado e tragado pelo nada negativo, aniquilador, que, na linguagem cristã, chama-se “pecado”, “morte segunda”, “inferno”; e, positivamente, de ser elevado ao “reino dos céus”, que é o reino da luz, da verdade e do amor, da plenitude do ser. O homem está pois entre os dois extremos: o céu e o inferno. Por isso, dizia o bem-aventurado Frei Egídio, fiel companheiro de São Francisco: “As graças e as virtudes são via e escada que conduz ao céu. O vício e o pecado são, porém, via e escada que precipitam o homem no inferno” (DE 1).

  • Uma confissão que sela toda a vida de Pedro

Quem nos faz uma bela consideração acerca desta misteriosa confissão de fé de Pedro é Bonhoeffer:

Duas vezes o chamado foi dirigido a Pedro: “segue-me!” (Mc 1, 17; Jo 21,22). […] No centro desta vida (o chamado) estava a confissão de fé em Jesus como o Cristo de Deus. Por três vezes, no início, no fim, e em Cesareia de Filipe, a Pedro é anunciada a mesma coisa, a saber, que Cristo é o seu Senhor e seu Deus. É a mesma e única graça de Cristo que chama: “segue-me! ”, e que se lhe revela na confissão de fé no Filho de Deus (…). Foi sempre a única graça de Cristo, que venceu o discípulo, induzindo-o a abandonar tudo por amor do seguimento, que operou nele a confissão de fé que para o mundo não podia parecer outra coisa que blasfêmia, que chamou o infiel Pedro à comunhão extrema do martírio, redimindo, assim, todo o seu pecado. Pela vida afora de Pedro, graça e seguimento são incindíveis. Ele tinha recebido a graça preciosa (D. Bonhoeffer).

  1. Paulo o doutor das nações

A segunda leitura da solenidade de hoje é tirada da Carta de São Paulo a seu inseparável e fiel companheiro em suas viagens apostólicas entre os gentios: Timóteo. Paulo tanto se dedicou à evangelização dos gentios, os pagãos, que é conhecido como o “doutor das nações”.

O caminho da fé de Paulo, porém, é bem diverso do caminho da fé de Pedro. Se para Pedro o Cristo da fé nasceu através do encontro com Jesus histórico, para Paulo nasceu de modo direto, isto é, através do encontro com o Cristo da Fé. Isso se deu em Damasco, em sua famosa viagem que tinha como objetivo exterminar os cristãos daquela comunidade.

Se, no Evangelho de hoje, vimos o princípio do chamado e da resposta de Pedro para ser o representante da “pedra angular” na edificação da Igreja, nesta leitura, Paulo relata o seu fim: “Quanto a mim, já estou para ser derramado em sacrifício, e o momento da minha morte está iminente. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé…” (2Tm 4, 6-8).  

O trecho é conhecido, geralmente, como “o Testamento de Paulo”. E a quota mais significativa de sua herança é de que a vida de um cristão vem marcada pela necessidade de um combate, uma luta até ser derramado em sacrifício, como numa libação. É neste combate que se decide se o discípulo de Cristo se torna o que ele, por graça, já é, ou não. Para isso, o cristão tem que correr o curso da vida, com todas as suas vicissitudes e peripécias, com todos os seus reveses, passando, inclusive, pela morte, com Cristo e como Cristo.

Na segunda parte desta leitura, tomado de emoção e de arrebatamento, diante do mistério que o acompanhou desde sua conversão até esse momento – o fim – vai exclamando – como que saboreando – seguidamente o nome do seu “Senhor”: “O Senhor, justo juiz” […]; “Mas, o Senhor esteve ao meu lado e me deu forças” […]; “O Senhor me libertará…” (2Tm 4,8.17.18).  E, como o arauto de uma grande luta, encarregado de anunciar a vitória final, exclama, alto e bom som: ”A Ele a glória, pelos séculos dos séculos! Amém”!  

  1. A perseguição e o martírio da Igreja

A primeira leitura de hoje, começa anunciando quase que em tom solene e festivo: “Naqueles dias, o Rei Herodes prendeu alguns membros da Igreja. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João…” (At 12, 1).

Lucas não apresenta nenhuma razão, como também, nenhuma lamentação diante de tamanha crueldade. A explicação é simples. Para o mundo, representado por Herodes, filho de outro Herodes, o Grande, é natural que ele deva perseguir e eliminar Aquele que o persegue e o condena: Jesus Cristo com seu Evangelho, representado, no caso, por seus seguidores, os membros da Igreja. Também é natural que esta, com seus membros, não tenha outra sorte senão a do Mestre: ser perseguida, martirizada, crucificada. Tudo, portanto, dentro de suas devidas razões. Se, portanto, o que levava Herodes a tais crueldades era agradar aos seus súditos judeus, aumentar a autoridade política dele promovendo as tradições judaicas, para os cristãos as perseguições eram tomadas como graça que o Senhor lhes proporcionava a fim de se identificarem com Ele pelo testemunho de sua fé. Por isso, a alegria e a gratidão.

Vem, a seguir, a cena da prisão e da miraculosa libertação de Pedro (At 12,4ss). Com esta narrativa, Lucas intenciona mostrar, primeiramente, qual seria a sorte de Pedro se não houvesse, evidentemente, a providência de Deus com seu milagre. E, em segundo lugar mostrar a grandeza do próprio milagre. Ou seja, embora os cristãos permanecessem em contínua oração era-lhes quase impossível crer naquela libertação se não o vissem com os próprios olhos e assim se fortalecessem também eles na fé em meio às perseguições que podiam, cedo ou tarde, atingir a todos e a qualquer um deles, pelo simples fato de serem seguidores de Cristo. A libertação de Pedro, era, pois, uma prova evidente do grande poder de Deus e de sua presença e ajuda aos cristãos que deviam viver no meio do mundo, com o mundo sem serem do mundo, isto é, no meio das perseguições. Por isso, Lucas termina a narrativa, pondo na boca de Pedro este admirável testemunho: “Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o seu anjo para me libertar do poder de Herodes e de tudo o que o povo judeu esperava! ” (At 12, 11).

Assim, no sucumbir da morte eles saem vencedores do bom combate. Todo o cristão é chamado ao martírio – isto é, ao testemunho – ainda que de modo incruento, isto é, sem derramamento de sangue. Mas, cada cristão é convidado à generosidade de dar tudo de si, de dar o seu suor, a sua lágrima, o seu sangue, para poder testemunhar a força libertadora do evangelho da graça de Deus, como o fizeram Paulo e Pedro, em Roma. Seria, pois, uma grande incoerência para não dizer uma heresia, e até mesmo uma ofensa ao seu Senhor, um cristão recusar ou maldizer as asperezas da vida e as perseguições que precisa enfrentar por causa de sua fé, venham elas de dentro ou de fora de si, de sua própria comunidade ou do mundo. Por isso, dizia São Francisco: “Atendamos, Irmãos, o Bom Pastor, que para salvar as suas ovelhas, suportou a Paixão da cruz. As ovelhas do Senhor seguiram-no na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação e em tudo o mais; e disso receberam do Senhor a vida sempiterna. Por isso, é grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos tenham feito obras e nós queiramos receber glória e honra apenas por citá-las” (Ad 5).

Conclusão

A solenidade de hoje nos enseja também a celebração do “Dia do Papa”, o grande pai, o pai comum, o pai de todos os homens, representado hoje, na pessoa do Papa Francisco.

Nem sempre na história, a figura do papa foi bem compreendida e bem vivida. Quem nos dá um belo exemplo neste sentido é São Francisco. Já nos primórdios de sua conversão vai a Roma em peregrinação a fim de junto ao sepulcro dos Apóstolos Pedro e Paulo encontrar inspiração e força para viver a graça da pobreza evangélica que começava a encantá-lo. Foi lá, junto a estes ícones da Pobreza de Cristo, que ele trocou sua roupa vistosa de novel cavaleiro deste mundo pela roupa maltrapilha dos pobres e mendigos de rua para assim poder “fazer-se um deles, comendo avidamente com eles suas comidas” (2C 8).

Mas, nessa questão, o gesto mais significativo de São Francisco foi sua viagem à Roma a fim de obter do Papa a provação de sua Vida evangélica, de sua Regra e de sua Ordem. O Papa, porém considerando aquela Vida por demais bárbara, em vez de atendê-lo, enviou-o a cuidar de porcos. Francisco, ouvindo isso, foi, fez o que o papa pedira e no dia seguinte voltou dizendo: “Senhor, fiz como mandaste: ouve, agora, eu suplico, meu pedido”. O Papa, admirado, vendo o que este homem fizera, acolheu o seu pedido, confirmou-lhe o ofício da pregação e a própria Ordem (Cf. Breve Biografia de São Francisco, de Rogério Wendover).

Admira, pois que Francisco, diferentemente de outros fundadores de Ordens que o antecederam, é o primeiro a ir à Roma para prometer diretamente obediência, isto é, fazer sua consagração religiosa, nas mãos do Papa.  Tudo isso acontecia porque Francisco, iluminado pelo Evangelho, em sua simplicidade humilde e humildade simples via no Papa o próprio Jesus Cristo que, humilde e obedientemente, se entrega nas mãos de seu Vigário como outrora se entregara ao seio da Virgem Maria, aos seus algozes na cruz e a todos nós no pão eucarístico.

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

[1] Esta cidade, que não deve ser confundida com Cesareia Marítima, fora reconstruída pelo tetrarca Filipe, filho de Herodes Magno, que deu a ela o nome de Cesareia, em homenagem ao César daquele momento, o imperador Tibério. Ela ficava não muito distante (55 quilômetros) de Damasco, da Síria, ao pé do monte Hermon e junto do rio Jordão.

[2] A expressão semítica, com efeito, “Filho de Homem”, quer dizer o mesmo que “Filho de Adão”, isto é, filho do “terroso”, daquele que é feito de terra. Assim, Deus se dirige a Ezequiel chamando-o de “filho de homem” (Ez 2, 1 etc.). Diante da glória do Senhor, Ezequiel não passava de um ínfimo filho de Adão.  Na apocalítica judaica o título “Filho de Homem” adquire uma conotação especial. Assim, em Daniel (7, 13), o “Filho de Homem” é entronizado pelo “Ancião” (Deus). Para o judaísmo, este “Filho de Homem” haveria de inaugurar a era messiânica e iria presidir o julgamento final dos homens.

[3] Cf. Exercícios de Cristianismo, II.

[4] As insígnias papais trazem duas chaves, uma de ouro, outra de prata, que foram, antes, emblemas do deus romano Jano (o deus da porta, de dois rostos, que olha para trás e para frente, para o passado e para o futuro – donde o nome do mês iniciador do ano “janeiro”). Chave de ouro e chave de prata é como o acesso ao brilho do dia (que remete ao sol – ao dourado) e ao brilho da noite (que remete à prata – ao argênteo). As duas chaves, portanto, se referem ao dia (o claro, o manifesto, patente) e à noite (o obscuro, o velado, o latente). As duas chaves também remetem à terra e ao céu. Jano, o deus da porta, com seu dois rostos, trazia um bastão na mão direita e uma chave na mão esquerda. Ele guardava as portas e governava os caminhos.