SOLENIDADE DA NATIVIDADE DE SÃO JOÃO BATISTA

SOLENIDADE DA NATIVIDADE DE SÃO JOÃO BATISTA

24/06/2018

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: Is 49,1-6; Sl 138; At 13,22-26; Lc 1,57-66.80

Tema-mensagem: Como João Batista, pensados-eleitos-chamados-enviados para preparar um povo perfeito.

Sentimento: alegria e estremecimento

Introdução.

No decorrer do ano litúrgico, três são as grandes Natividades que a Igreja celebra com júbilo e de modo solene: a de Jesus, a de Maria e hoje a de São João Batista. João Batista, é o único Santo, além de Maria, do qual celebramos também seu nascimento e não apenas o dia de sua morte, isto é, o dia de seu nascimento para o céu. Embora todo o nascer seja um milagre, porque nele está sempre em jogo um envio divino, no nascer destes santos o envio divino se manifesta de modo mais glorioso. Dele depende o destino de todos os homens. Assim, o nome que o enviado recebe assinala a ação de Deus na história: no caso, o nome de João, Iohanan, significa, “O Senhor Deus é gracioso”.

  1. O anúncio de um profeta que será luz para todas as nações

Nossas Pistas vão seguir a indicação de Jesus no caminho de Emaús, quando “começando por Moisés e todos os profetas, ele explicou em todas as Escrituras o que lhe dizia respeito” (Lc 24, 27). Leremos, assim, a passagem do livro de Isaías, a partir do Evento Cristo. De fato, os padres da Igreja, entendiam que toda a Sagrada Escritura deve ser lida e entendida em relação à pessoa, ao mistério de Cristo. Ele é o centro, o princípio das Escrituras. Para Ele converge todo o Antigo Testamento e Dele procede todo o Novo Testamento e a Igreja: Ele o futuro e o verdadeiro Servo de Jahvé e a Igreja sua Serva: Ele o Mysterium Solis e ela o Mysterium lunae“. Assim, numa leitura cristã da mencionada profecia, deve-se procurar intuir o mistério do futuro Messias, Jesus Cristo que, na e pela Cruz, em meio às mais densas trevas deste mundo, brilha como “a luz dos povos” de toda a terra – “Lumen Gentium” – proclama o Vaticano II.

  • Nações marinhas, ouvi-me!

O cântico começa num tom de grande solenidade e ênfase: “Nações (ilhas) marinhas, ouvi-me! Povos distantes, prestai atenção!” (Is 49,1). O endereço é muito claro e explícito: a mensagem é para todos os povos da terra. Todos são chamados a escutar e a acolher a Palavra do Senhor para assim torarem-se Ekklesia, assembleia dos ouvintes da Palavra: Igreja. Sem o alento e a luz dessa Palavra são como “ilhas”, cercados e ameaçados pelo mar, isto é, pela instabilidade do mundo histórico, o abismo no qual os homens podem naufragar.

 Assim, esta ekklesia será para os homens do mundo, terra-firme, protegida no e pelo mistério do Salvador. Os povos que, desde Adão e por causa de seu pecado, foram dispersados pelo orbe da terra até às suas extremidades, serão, assim, recolhidos neste insondável mistério que acompanha e atravessa a história dos homens; mistério de congregação e de salvação do qual, primeiramente Israel e depois a Igreja, devem ser seus testemunhas e anunciadores.

  • Ele tinha na mente o meu nome

O oráculo começa com uma palavra enigmática: “O Senhor me chamou desde o seio materno, desde o ventre de minha mãe, repetiu para si o meu nome” (Is 1, 1). O nome diz como alguém é chamado. O chamado significa vocação e missão, isto é, envio de ser, destinação. “Nome é terra, nome é mundo, nome é biografia, nome é história, nome é envio de ser”[1].

Cada homem que nasce, na sua singularidade, tem um lugar único no mundo. É uma “palavra viva”, um anúncio que a vida diz apenas uma vez. A concepção, a gestação, o nascimento de uma criança é o acontecer da irrupção de um mistério único, singular: o florescimento da finitude de uma existência humana como obra da natureza, da liberdade e do destino, em que o cuidado de Deus atua.

Martin Buber, um mestre judaico, escreveu: “Cada um, segundo o seu próprio modo, deve instituir algo de novo à luz do ensinamento e do serviço de Deus; e não fazer o já feito, mas sim aquilo que ainda se há de fazer”[2]. Assim, com cada homem que nasce  vem ao mundo algo de novo, que nunca existiu, algo de primeiro e de único. Deste modo, cada homem é único e necessário. Nenhum outro lhe é e jamais haverá idêntico.  Da mesma forma, também, segundo esta unicidade, cada um deve realizar no mundo uma obra única.

No oráculo, fala Alguém que tem consciência do seu singular e, ao mesmo tempo, universal chamado. Sua existência e sua história estará a serviço dos homens todos, de todos os povos da terra.

  • Ele dispôs a minha boca como uma espada pontiaguda (Is 49,2).

Espada diz corte, cisão, de-cisão, separação, rompimento, morte ao inimigo. Cristo, no Evangelho, diz: “Não ponhais a imaginar que eu vim trazer a paz à terra; eu não vim trazer a paz, e sim a espada. Sim, eu vim separar o homem de seu pai, a filha da sua mãe, a nora de sua sogra; os inimigos de alguém serão as pessoas de sua própria casa” (Mt 10, 34-35). Na luta da vida diária, um seguidor  de Cristo precisa desprender-se de seus vínculos habituais, “naturais”, com o mundo, com os outros homens, consigo mesmo – seu único e verdadeiro inimigo. Precisa aprender a abnegar-se, a renunciar. Precisa aprender a combater o bom combate, a vencer a si mesmo. Sem se opor ao seu mundo imediato e sem colocar toda a sua existência na mediação de Cristo, o profeta, o anunciador da palavra, o homem não poderá, jamais, segui-lo. A palavra de Deus, à qual o profeta, o mensageiro, o apóstolo, serve, e tem é uma “palavra viva e eficaz” (Hb 4,12) porque é capaz de separar o que é de Deus e o que é do maligno, do reino dos Céus e do reino dos homens, o que é do espírito e o que é da carne. É o que evoca o prólogo dos Ditos de Frei Egídio, nas Fontes Franciscanas, quando escreve: “A Palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que toda e qualquer espada de dois gumes: viva, vivificando os mortos, eficaz, medicando os enfermos; e mais penetrante que toda e qualquer espada de dois gumes, perfurando os endurecidos até as articulações divisórias da alma e do espírito e separando os vícios das virtudes” (DE 1)

No mesmo verso o Autor do oráculo proclama ainda que o Senhor “o protege à sombra de sua mão”. Essa proteção, Jesus Cristo, a recebeu, desde a sua concepção no ventre de Maria. Nele, a fragilidade da natureza humana foi revestida pela potência divina, a sombra do Espírito divino: “O anjo lhe respondeu (a Maria): ‘O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra; e por isso aquele que nascer será santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1, 35).

1.4. “Meu servo, és tu, Israel, através de quem eu manifestarei o meu esplendor” (Is 49,3).

Na Sagrada Escritura, o termo servo, antes de uma relação meramente familiar e social é usado para expressar a alegria e a gratidão da afeição e, consequentemente, da fé e da confiança que se estabelecem entre duas pessoas movidas pelo vigor da gratuidade do encontro. É dentro deste mistério que o Senhor chama o seu Escolhido de “meu servo”. Também Maria, diante da graça da inaudita visita, exclama: “Eis aqui a serva do Senhor!” Ser servo quer dizer: a existência desse homem não se realiza a partir de sua própria iniciativa e de suas próprias possibilidades, mas a partir do encontro com o Outro, em vista da disponibilidade a consumar esta pertença em tudo, até o fim. O servo não pertence mais a si, mas tão só ao seu Senhor e sua missão e glória não serão jamais suas, mas sempre e unicamente a missão e a glória de seu Senhor.

No Servo, o Senhor manifestará a sua glória. No Evangelho de João, Jesus Cristo encara a sua morte na cruz como a glorificação do Pai, isto é, como o momento de revelar aos homens todo o esplendor, todo o bem-querer do Pai. “Agora minha alma está perturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas, é precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome” (Jo 12, 27-28a). Sua morte foi um sacrifício de louvor ao Pai porque manifestou aos homens o seu amor por eles. Por isso, São Francisco em seu “Ofício da Paixão”, que ele elaborou para celebrar este mistério, transformou as palavras do salmo 57 (56) desta forma: “Pronto está o meu coração, pronto está o meu coração, cantarei e salmodiarei. Levanta-te minha glória, levanta-te saltério e cítara: levantar-me-ei à aurora”.

1.5. “Mas eu dizia: ‘Em vão me afadiguei, é por coisa vazia, por vento, que esgotei a minha energia!’” (Is 49,4)

A segunda parte do Cântico começa com uma espécie de desabafo. Aos olhos do mundo a missão sempre aparece como um fracasso e o Servo de Deus um fracassado. Jesus Cristo se encontrou nesta situação em sua paixão e morte. Aparentemente, todo o seu amor pelos homens deu em nada. À vista de Jerusalém ele chorou. Rejeitado e abandonado por todos, ele é entregue aos braços da cruz somente. Até mesmo o Pai parece-lhe tê-lo abandonado… Mas, só lhe parece, pois “Na verdade, o meu direito me esperava junto ao Senhor, minha recompensa, junto ao meu Deus” (Is 49,4). Enfim, o Pai lhe responde com um Sim: o glorifica com a glória que sempre teve junto Dele > o de ser seu Filho único e muito querido no qual deposita toda a sua confiança e para o qual entregou o seu reinado.

1.6. “Ele me modelou desde o seio materno…”

Nesta frase, o Servo de Deus toma consciência de sua verdadeira origem-identidade – vocação-missão. Jesus fora formado desde o ventre de sua mãe (Sl 11, 10) para reconduzir as ovelhas perdidas de Israel (Mt 10, 5; Mt 15, 24). Ele foi perseguido pelos seus compatriotas e morto por aqueles a quem estava confiada a obra do Reino de Deus (Mt 21, 38). Jahvé, porém, não se deixa vencer em sua misericórdia. Por isso, a queda de Israel, face ao seu Salvador, torna-se o ensejo para o reerguimento dos demais povos da terra, como meditará Paulo na Epístola aos Romanos (Rm 11). O seu labor e a sua dor não foram em vão. De judeus e de gentios que n’Ele creram e que o seguiram pela via da cruz surgiu a semente de uma nova humanidade. “A pedra que os pedreiros rejeitaram tronou-se a pedra angular” (fundamentum angularis) de um novo edifício, de uma nova “Eklesia”: Igreja. Jesus Cristo é o fundamento, isto é, o suporte sustentador da nova humanidade. É angular, pois reúne em si, numa nova humanidade, os lados contrapostos da antiga humanidade dividida: judeus e gentios.

1.7. “Eu te farei luz das nações”

Vem então a mensagem central do Cântico: “Ele me disse: É pouco que sejas para mim um servo reerguendo as tribos de Jacó, e reconduzindo os preservados de Israel, eu te farei a luz das nações… (Is 49,6).

Só agora, Jahvé confirma o seu Servo em sua missão. Trata-se de uma missão de extensão e compreensão universais: “Eu te destinei a seres luz das nações a fim de que leves a minha salvação até os extremos confins de toda a terra” (idem). Eis o anúncio sempre antigo e sempre novo do desejo mais profundo de Deus: a universalidade ou catolicidade de seu Reino que deve se instaurar no mundo através dos seus eleitos e servos.

  1. João, o batista, o precursor e o preparador

São Lucas, na segunda leitura de hoje – tirada do livro dos Atos dos Apóstolos – retoma o anúncio de Isaias. Apresenta Jesus como a realização da aliança que Deus fizera com Davi e sua casa. Foi da descendência de Jessé, pai de Davi, que Deus, “segundo a sua promessa, fez sair Jesus, o salvador de Israel” (At 13, 23).

 Associado a este evento axial da história está o significado histórico da aparição de João Batista, o precursor do Cristo: “Precedendo à sua vinda, João já proclamara um batismo de conversão (metánoia) para todo o povo de Israel” (At 13, 24). Muitos ficaram em dúvida se João fosse o Profeta ou o Cristo… Ele, porém, faz uma declaração sem restrição: “Eu não sou aquele que pensais que eu seja!” (At 13,25). E negou peremptoriamente o que não era, mas, não negou o que era. Ele era a voz que clama no deserto para preparar as vias para o Senhor que vinha; ele era a voz, Cristo porém, a Palavra, o Verbo de Deus, “que estava voltado para Deus”, sim, “que era Deus” (Jo 1, 1). Era o precursor cuja missão era preparar os homens para ouvir a Palavra, o Verbo encarnado de Deus. Por isso, declara com firmeza: “Mas, eis que vem depois de mim alguém do qual não sou digno de desatar as sandálias”.

Ele era apenas um precursor do Cristo, através do anúncio da graça e do batismo. Por isso, aponta para a excelência do Cristo. Nem pode haver comparação entre ele, João, e este, Cristo. Por isso, o “não ser digno de desatar a correia da sua sandália” quer dizer que João nem mesmo pode se colocar entre os seus servidores mais humildes. Na esfera do toque, do enamoramento – e a eleição sempre é um fenômeno de enamoramento – sempre impera a humildade. Por isso, essa será a mística, o caminho que mais tarde encanta Francisco de Assis: “’Quero que esta fraternidade seja chamada Ordem dos irmãos Menores’. De fato, eram menores, porque eram ‘submissos a todos’, sempre procuravam o pior lugar e queriam exercer o ofício em que pudesse haver alguma desonra, para merecerem ser colocados sobre a base sólida da humildade verdadeira e neles pudesse crescer auspiciosamente a construção espiritual de todas as virtudes” (1C 38).

João veio, pois, como o precursor, isto é, como o preparador de caminhos para Jesus, o Cristo, no qual se manifesta e se consuma a salvação universal, que vale para judeus e para gentios. Por isso, Paulo encerra seu discurso, que poderíamos chamar de  “ad urbi et ad orbe” (para a cidade e para o mundo) com esta convocação: “Irmãos, quer sejais filhos da linhagem de Abraão, quer pertençais aos que entre vós temem a Deus, é a nós que a palavra desta salvação nos foi confiada!”.

  1. João Batista, um grande Nascimento

Para celebrar o mistério de hoje, a Igreja proclama o trecho do evangelho de Lucas que anuncia a natividade de João Batista, sua circuncisão e uma breve alusão à sua juventude.

  • Completou-se o tempo

Lucas, começa em tom solene, como o exige a grandiosidade do momento: “completou-se o tempo da gravidez de Isabel, e ela deu à luz um filho” (Lc 1,57).

Na história, o parto de uma mulher se constitui sempre num fato natural, embora admirável e alegre. Em nosso caso, porém, estamos diante de algo um tanto inédito, de acordo com o curso normal das leis da natureza humana. Isso porque os pais eram já muito idosos e a mãe estéril. “Mas, para Deus”, como já havia assegurado o anjo à Maria, a mãe de Jesus: “nada é impossível” (Lc 1,37). Santo Agostinho diz que o fato é tão grandioso que, certamente, temos dificuldade de dar-lhe uma boa explicação. Mas que, então, pelo menos, nos disponhamos a meditá-lo frutuosa e profundamente.

A mãe escolhida para esta graça se chamava Elisabete ou Isabel. Em hebraico, Elishebba, significa “Deus é abundância”. E foi, justamente, graças à superabundante bondade e gratuidade de Deus (El), que chegou a plenitude do tempo da gestação de Elisabete, o momento oportuno do nascimento de seu filho, João, cujo nome, em hebraico, Iohanan, significa “Deus é gracioso”.

Lucas, gosta de pôr a natividade de João Batista em íntima relação com a Natividade de Jesus. Por isso, tanto numa como noutra vem o anúncio: “chegou a plenitude do tempo”. O tempo do nascimento de João apressa o tempo do nascimento de Jesus: é quando chega a “plenitude dos tempos” (Gl 4, 4) para os homens de boa vontade de toda a terra. João é como a aurora. Ela não é o dia, mas o aponta e o prepara.

  • Todos se alegraram com Isabel

A repercussão da estranheza do acontecimento vem assim registrado: “Os vizinhos e os parentes souberam que o Senhor a cumulara com a sua bondade e se alegravam com ela” (Lc 1,58). E não podia ser diferente. Pois, justamente à desprezada e humilhada, à envelhecida e estéril o Senhor, “Javé-Adonai”, o Grande, o Magnífico havia magnificado (Elishebba) com o seu amor matricial, com a sua misericórdia (éleos). O evento é tão inaudito que sua alegria não consegue ficar restrita ao âmbito da família. Também os vizinhos e demais parentes “ouviram dizer”, isto é, tornaram-se testemunhas da abundância da bondade, da misericórdia com que o Senhor a agraciou; tornaram-se partícipes da alegria que o manifestar-se dessa bondade traz consigo.

Sentem, percebem que estão diante de algo totalmente inesperado, inusitado, que revelava um envio; que Aquele Menino trazia um desígnio divino, um sinal de salvação, de misericórdia de Deus. Assim, como o nascimento daquele menino não seria fonte de alegria apenas para a família de Zacarias e Elisabete, mas também para toda a sua vizinhança, o Natal de Jesus o será para todos os homens de boa vontade e de todos os tempos.

  • A circuncisão e o nome

Vem então, a questão do nome e da circuncisão: “Ora, no oitavo dia, vieram para a circuncisão da criança e queriam pôr-lhe o nome do pai, Zacarias” (Lc 1,59).

No nascimento de todo o judeu piedoso convergiam dois sinais: a circuncisão, sinal instituído por Deus, e o nome, sinal instituído pelos homens. No entanto, aqui a situação se modifica. O nome não será dado pelos homens, segundo os critérios humanos. Será dado por Deus, mediante o ministério angélico – revelado a Zacarias – e mediante inspiração do Espírito Santo, concedida a Elisabete. O nome do menino não resultaria de uma imposição, denominação ou tradição humana, mas de uma imposição e denominação divina. O nome do menino seria recebido de Deus mesmo e seria um sinal do envio de seu existir na história – enquanto história sagrada, de salvação.

O nome Zacarias pode significar “recordação de Deus” e aponta para o passado. Mas, o nome João significa algo presente: que Deus manifesta aqui e agora o seu amor matricial, a sua misericórdia, a sua graça. Zacarias pertence ao passado, ao Antigo Testamento (Aliança), quando a ausência de Deus se fazia sentir, mais do que sua presença. João pertence ao presente, ao Novo Testamento (Aliança) quando a presença de Deus, sua vinda, sua chegada, na história dos homens se torna patente, em Jesus Cristo. De fato, o filho de Zacarias poderia apontar com o dedo a presença viva e imediata, corporal, em carne e osso, de Deus, embora velada na fragilidade de nossa humanidade, ao dizer: “Eis o cordeiro de Deus!” (Jo 1, 29). O nome de Zacarias não seria, pois adequado para o menino. Este era o entendimento de Elisabete, a primeira criatura humana, depois de Maria, a ter a graça do encontro com Filho de Deus vivo, ainda sendo gestado no seio de Maria.

Em meio à discussão sobre o nome do menino, Zacarias, pois, confirma a posição de Elisabete e atesta que aquele menino seria um sinal da graciosidade superabundante de Deus na história dos homens: “João é o seu nome” – Isto é: Deus é misericordioso, gracioso, pleno de um amor matricial pelos homens da terra e pela terra dos homens.

Uma vez que Zacarias deu este testemunho, atestou esta verdade da graça divina no nascimento do menino, a sua boca se abriu e a sua língua se soltou, “e ele falava bendizendo a Deus”. Se, antes, a língua de Zacarias se prendeu e sua boca se emudeceu devido à sua incredulidade, agora, devido à sua compreensão do mistério e à sua adesão a ele na fé a sua boca recobrou a capacidade da palavra e a sua língua se desprendeu no canto de louvor, na bendição de Deus. A igreja, para manter viva a alegria e a eficácia do nascimento deste novo tempo de graça e de misericórdia, todos os dias, no ofício da Manhã, faz ecoar em todos os recantos da terra: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel porque visitou e libertou o seu povo e fez surgir em nosso favor um grande Salvador…” (Lc 1,68-69).

O nome João era um prenúncio  do Nome de Jesus, um vaticínio. Aproximava-se a Salvação de Deus. Os tempos da espera se passaram. Agora começam os tempos da realização da promessa divina, da consumação de sua graça na vida dos homens. A lei, os profetas, os salmos, agora, poderiam se tornar transparentes, deixando aparecer a figura central a que eles apontam: O Cristo, o Salvador.

  • Todos os vizinhos foram tomados por um frêmito

 Todos os parentes e vizinhos que, no nascimento do menino, testemunharam com alegria o presságio da graça divina, agora, por ocasião de sua circuncisão e nomeação, são tomados de um frêmito (“temor”) – não somente eles, mas “todos os que habitavam nas redondezas” (Lc 1,65). Novamente, a intenção de Lucas é muito clara: revelar que, assim como a alegria do nascimento de João Batista se espalhava e  repercutia por toda a redondeza, o mesmo e de modo muito mais profundo e abrangente se dará com o nascimento de Jesus. À alegria se mescla, aqui, o frêmito, isto é, o estremecimento frente ao mistério, o pressentimento de que, em meio aos acontecimentos, um envio divino estava em curso.

 Algo de grande estava por acontecer! Por isso, “todos os que souberam da notícia, a guardaram em seu coração e diziam entre si: ‘Que vai ser este menino?’” (Lc 1,66). E, de fato, a mão do Senhor estava com ele. Resguardaram o mistério que envolvia estes acontecimentos no seu coração, isto é, no mais íntimo, no âmago deles mesmos. Era um mistério cordial. A “mão do Senhor” significa sua santa operação, ou melhor, o Espírito Santo e sua santa operação…

  • E o menino crescia

A narrativa termina apontando para o futuro: “Quanto ao menino, ele crescia e o seu espírito se fortalecia; e ele esteve nos desertos até o dia da sua manifestação a Israel” (Lc 1,80). Seu corpo crescia e, com isso, seus afetos, sua memória, seu pensamento e sua vontade se voltavam para Deus. Ele fortalecia-se no espírito, isto é, no sopro da vida, especialmente naquilo que a vida humana tem de mais próprio e essencial: na capacidade de compreensão e de bem-querer. Tudo isso acontecia no deserto, no ermo, na solidão, longe dos tumultos humanos e do mundo. No deserto, ele era formado para ser um atleta, um lutador de Deus. Nos desertos: onde o ar é mais puro, o céu é mais claro, onde a familiaridade com os homens diminui, desaparece para nascer, crescer e florescer a familiaridade com Deus.

Hoje, viver no deserto significa tomar distância da massificação, da maquinação do poder, do frenesi das vivências da subjetividade, dos ruídos dos falatórios. Significa assumir um outro modo de ser: da abertura do ser para o mistério. Significa viver a vida no abscôndito do mistério. Significa guardar o segredo de Deus. O dono do segredo é Deus mesmo e ele pode manifestá-lo quando quiser, como quiser…

Conclusão

Mais do que nunca, hoje, num mundo em derrocada e numa terra desolada, assolada, desertificada, se faz necessária a vocação-missão de João Batista: “preparar um povo perfeito”.

João Batista, chega até nós como realização do homem que, pelo seu chamamento e pelo seu envio na história, participa no mistério maior do chamamento e do envio do Cristo. Como ele, todos nós temos a chance de participar desse chamamento e desse envio, ajudando na formação do “povo perfeito” para o Senhor.

Belo exemplo de alguém que viveu em busca desta vocação-missão foi São Francisco. Segundo as Fontes Franciscanas, Francisco recebera da própria mãe o nome de João quando, ao renascer da água e do Espírito Santo, deixou de ser filho da ira para tornar-se filho da graça. Essa mulher, amante de toda honestidade, gozando de um privilégio de se parecer com Santa Isabel, seja na imposição do nome ao filho seja pelo espírito de profecia, avantajava-se pelo sinal da virtude nos costumes. Pois, quando os vizinhos admiravam a magnanimidade de Francisco e da honestidade dos seus costumes, ela, como que instruída por um oráculo divino, dizia: “O que vocês pensam que este meu filho vai ser? Pela graça dos méritos, saberão que se tornará filho de Deus” (2C 2).

Assim, Francisco, embora conhecido mais por este nome, na verdade, recebeu no Batismo não apenas o nome de João Batista, mas também o fogo ardente de seu chamado-resposta. Por isso, pelo seu testemunho de pessoa simples, humilde, pobre e fraterna tornou-se um dos mais expressivos ícones de preparadores de um “Povo perfeito” para o Senhor, levando a “alegria do Evangelho”, a Paz, a reconciliação aos homens de sua época e de todos os tempos e até mesmo às criaturas não humanas.

Nele pode-se aplicar muito bem o que o nosso Papa pede hoje para todos nós. O coração verdadeiramente missionário, apostólico, diz ele, citando o Apóstolo, procura “fazer-se fraco com o fracos … e tudo para todos” (1Cor 9,22). E acrescenta: “Nunca se fecha, nunca se refugia nas pró­prias seguranças, nunca opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada” (EG 45).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes  Frei Dorvalino Fassini

[1] Emmanuel Carneiro Leão. Prefácio do livro “Os nomes de Rosa”, de Amariles Guimarães Hill. Teresópolis: Daimon, 2012.

[2] Buber, Martin. Il cammino dell’uomo – secondo l’insegnamento chassidico. Magnano: 1990, Edizioni Qiqajon, Comunità di Bose, p. 26.