9º DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO “B”

9º DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO “B”

03/06/2018

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: Dt 5,12-15; Sl 80/812; 2Cor 4,6-11; Mc 2,23-3,6

Tema-Mensagem: O repouso semanal – momento para celebrar e recordar que somos criados e chamados para a festa do encontro com Deus, com os irmãos e com todas as criaturas

Sentimento: alegria e festa

Introdução

Por sorte, neste ano, o primeiro domingo depois da Solenidade da Santíssima Trindade, que marca o reinício do Tempo Comum – Tempo da Obra evangelizadora da Igreja – nos conduz para dentro do sentido maior e primeiro de nossa vida neste mundo: a festa do encontro com Deus, com a história, com os irmãos e com todas as criaturas. Eis a mensagem, proclamada pelas leituras da missa de hoje, centralizada na famosa lei da observância do sábado.

  1. Um mandamento da liberdade e para a liberdade

A primeira leitura de hoje, faz parte do capítulo 5 do livro do Deuteronômio que traz a revelação da tradição judaica acerca da origem do Decálogo, isto é, das 10 Palavras ou Mandamentos e que vem assim expressa: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da servidão” (Ex 20, 2; Dt 5, 6).

Estas palavras são fundamentais para a criação, organização e sobrevivência do Povo de Deus tanto a nível social-comunitário, como individual.  Por isso, elas têm um caráter de mandamento, ensinamento, doutrina, caminho, vida. Seu sentido é levar o viver humano à consumação da busca do sentido da vida na liberdade e como liberdade, diferentemente, portanto, das demais criaturas que o fazem seguindo a determinação do seu instinto.

Quando aqui se fala em liberdade está se pensando na liberdade que não seja apenas negativa como ausência de empecilhos, adversidades, dependências, etc., mas, sim positiva, no sentido de ser livre para, a partir de sua própria reponsabilidade. Por isso, tudo o que estas Palavras proíbem são aqueles apegos que ao homem tiram a liberdade, e tudo o que elas ordenam são o desprendimento que leva o homem à liberdade.

  • Os mandamentos, expressão do amor de Deus para com o homem

Os Dez Mandamentos ou Palavras, mais que expressão de uma combinação – constituição – nascida da vontade ou decisão de homens, são um dom de Deus. É por amar o seu povo que Ele dá as coordenadas do seu caminhar, para que ele, povo, possa conquistar a terra boa e fecunda que lhe proporcionará uma vida plena e feliz. Os imperativos dos mandamentos, portanto, são recomendações de um Deus amoroso, que visa a felicidade, a bem-aventurança do seu povo, e não de um patrão, chefe ou imperador. São envios, que destinam o homem à consumação da vida boa e plena, a perfeita alegria (São Francisco), a bem-aventurança (Evangelho), a felicidade que nasce da liberdade verdadeira e positiva.

Segundo a tradição judaica, portanto, as Dez grandes Palavras de Jahvé são dons e fontes de bênçãos porque nos põem em contato com Ele mesmo; porque seu objetivo maior é o encontro com Deus no amor e pelo amor e o encontro com o outro – o homem e as demais criaturas. Enfim, elas são dons e fonte de bênçãos porque balizam o encaminhamento do viver humano a partir deste encontro, princípio e fim de todo nosso viver.

É neste contexto que se há de compreender o texto de hoje a respeito do sábado. A motivação do mandamento de guardar o sábado (o repouso semanal) é diversa no livro do Êxodo e no livro do Deuteronômio.

  • O repouso por causa de Deus

Segundo o Êxodo, a motivação acerca do repouso sabático é teocêntrica, isto é, nasce a partir do horizonte da criação, mais precisamente, do repouso de Deus. Pois, depois de haver criado tudo o que há neste mundo, “no sétimo dia, Deus descansou. Por isso o Senhor abençoou o dia do sábado e o santificou” (Ex. 20,11)

O verbo hebraico usado, porém, para “santificar” ou “consagrar” recebeu também o sentido de “desposar”. Por isso, a tradição hebraica, na véspera – sexta-feira à noite – toma o sábado como noiva do Senhor dizendo: “Vem, amigo, diante da noiva; acolhamos a face do sábado”. Neste sentido, o sábado seria uma espécie de celebração dos esponsais de Deus com os homens.

O repouso, porém, antes de uma decadência (declínio) do movimento da busca do nosso humano num nada negativo, privativo – preguiça, ociosidade –  é o bem assentar-se no movimento de sua consumação. Repouso é, então, recolhimento na virtude, isto é, no vigor da quietude, da paz, da serenidade, como muito bem descreve São Francisco: “Onde há paciência e humildade, não há ira nem perturbação… Onde há pobreza com alegria, não há cobiça nem avareza. Onde há quietude e meditação, não há afã nem divagação” (Ad 27)

  • O repouso por causa do homem

Se no Êxodo a motivação para o mandamento do sábado era teocêntrica, no livro do Deuteronômio é antropocêntrica, mais precisamente, a esfera da história da salvação e, mais concretamente ainda, o memorial da libertação do Egito. “Tu te lembrarás de que, na terra do Egito, eras escravo e que o Senhor, teu Deus, te fez sair de lá com mão forte e braço estendido. Eis por que o Senhor, teu Deus, te ordenou guardar o dia de sábado” (Dt 5, 15).

Dentro deste mesmo foco, o salmo de meditação de hoje (80/81) nos conduz para o pensamento do Senhor mesmo que diz: “Tirei de seus ombros a carga; as suas mãos foram livres dos cestos” (v. 6). O sentido, pois, da instituição do sábado, é a comemoração da liberdade do Povo de Deus, uma liberdade positiva, que nasce como dom de uma lei que lhe foi dada “quando saiu do Egito”. Uma liberdade, ampla, universal que deve estender-se solidariamente aos escravos, aos migrantes e até mesmo aos animais domésticos.

A partir do tempo do exílio, o sentido do sábado, porém, começa a deslocar-se: em vez de apontar para sua origem – Deus e a celebração da liberdade humana – começa a ser usado como meio, instrumento e princípio de identificação e exaltação do judaísmo, como nação fechada em si mesma com suas leis e tradições, concorrente e em oposição a todas as demais nações. Por isso, aos poucos, descambou para a escrupulosa observância meramente formal e interesseira do repouso. Ser judeu era observar o sábado. Não o observar era ser e equiparar-se aos pagãos.

  • O homem de hoje e suas escravidões

Hoje, entre nós, a escravidão imposta pelos fariseus e mestres da lei no que diz respeito à observância do sábado adquire um novo sentido com expressões e manifestações várias. Entre essas e talvez a mais dominante esteja a imposição de uma ordem unidimensional de produção e consumo, que se estende planetariamente sobre todos os povos. Nesta ordem, a economia não está a serviço da vida, mas a vida, o homem, a família, a comunidade é que está a serviço da economia. O homem não trabalha para viver, mas vive para trabalhar. E quando isto acontece, em vez de se ganhar a vida com o trabalho, se perde a vida, a pessoa, a família, a comunidade. A pessoa assemelha-se à peça de uma máquina que devido ao uso contínuo e prolongado vai se desgastando até sua total inutilidade, não lhe restando mais nenhum outro destino senão ser jogada fora.

À opressão do trabalho, os antigos opõem a liberdade do ócio. Trabalha-se para celebrar a vida e seus mistérios, para a festa, a contemplação, o culto, a liberdade o repouso. Apontam para a dimensão da gratuidade da vida, pois, sem esta dimensão o negócio, o labor, a obra, a ação, o agitar mundano se perdem. Assim, quando tomados como o absoluto de nossa vida, escravizam o homem. Hoje, mais do que nunca, o viver humano está sob o imperativo desta agitação. Mesmo a dimensão do ócio foi adulterada na forma do entretenimento e do consumo (ainda que seja de vivências culturais, religiosas, etc.). Ela foi tragada pela ambição da produção e do consumo.

Por causa dessa escravidão atual, o mandamento do sábado adquire, hoje um sentido iluminador e urgente. É preciso que ele volte a comandar a liberdade do ócio. Já o poeta grego Píndaro dizia: dedicamo-nos aos negócios para alcançar o ócio. Hoje, porém impera por toda a parte a lógica única do negócio e nos esquecemos de cultivar a dinâmica do ócio com suas variadas expressões: a diversão, o lazer, o esporte, a arte, o pensamento, o culto religioso, a contemplação espiritual, etc. 

Sirvam-nos de exemplo os mestres de nossa Escola. São Francisco, por exemplo, não cessava de exortar: “Assim, excluído o ócio, inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual devem servir todas as coisas temporais” (RB 5,3). Frei Egídio, que tanto recomendava a diligência no trabalhar, também, de igual modo, recomendava: “Como a má ociosidade é caminho para o inferno, a santa ociosidade e a quietude são caminho para o céu” (Cf. DE 7,6).

Segundo nosso Papa, a razão última de toda a crise atual está no antropocentrismo moderno que acabou paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, principalmente, acima da pessoa. Por isso, também, sua cura não será outra senão o reconhecimento do valor do ser humano, um valor peculiar acima das outras criaturas.  “Assim”, diz o Papa, “para uma relação adequada com o mundo criado, não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura ao «Tu» divino. Com efeito, não se pode propor uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus” (LS 119).

  1. Jesus, a consumação do sábado

Com o mistério de sua encarnação-morte e ressurreição Jesus Cristo não apenas retoma o sentido original do sábado, mas também o leva à sua consumação: Ele mesmo se torna “o Senhor do Sábado”, como vemos no Evangelho. Duas partes formam e movem a conduta de Jesus no Evangelho de hoje, tirado de Marcos:

– a discussão com os fariseus acerca da questão da observância do repouso sabático;

– a cura de um homem de mão paralisada.

2.1. O formalismo legalista versus a liberdade dos filhos de Deus.

A questão da observância do sábado, aqui, aparece numa controvérsia dos fariseus com Jesus e que tem início num fato muito simples e corriqueiro: “Seus discípulos, começaram a arrancar espigas, enquanto caminhavam” (Mc 2,23). A partir deste comportamento Jesus e seus discípulos são acusados, não de furto, mas de não guardar a observância do sábado. É impressionante o poder da cegueira que nasce do fanatismo: um fato tão simples – arrancar espigas e debulhá-las, provavelmente a fim de saciar a fome  ­- se transforma em colheita: trabalho = violação do sábado.

 A resposta de Jesus frente à acusação dos fariseus remete ao episódio em que Davi, face à necessidade sua e dos seus companheiros de saciar a fome, comeu os pães da proposição na casa de Deus – coisa que só aos sacerdotes era permitido – os compartilhou com eles. Depois de ter recordado este episódio, Jesus diz: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado, de sorte que o Filho do homem é senhor até do sábado” (Mc 2, 28).

A primeira parte deste dito não expõe algo inaudito no judaísmo. De fato, a obrigação do sábado cessa quando sua obediência acarreta grave dano para a pessoa. Já o dissera um rabino: “O sábado foi entregue a vós, não vós ao sábado” (Ex 31, 14). Os fariseus, aqui, com seu rigorismo formalista, confundiam obediência com observância funcional, “mecânica”, impessoal, de comandos. Atendo-se ao correto, ficavam na aparência e na sombra do mandamento, não captavam o seu sentido essencial. Caiam, assim, no perigo que acompanha tantos homens que se querem e se consideram pios e justos diante de Deus: a divinização da Lei e a redução legalística de Deus. Com isso, Deus é dissolvido na Lei e deixa de ser o Senhor da Lei. Troca-se o doador pelo dom, o presente pelo invólucro, a semente pela casca. O essencial da Torah, o ensinamento do caminho para a vida feliz e livre, acaba sendo encoberto e esquecido por causa do legalismo. O essencial, porém, é o amor a Deus e ao próximo. O evangelho de Mateus, neste sentido, acrescenta algo importante na resposta de Jesus: “Se tivésseis compreendido o que significa: É a misericórdia que eu quero, não o sacrifício, não teríeis condenado esses homens, que não cometeram falta” (Mt 12, 7).

  • O filho do homem é senhor do sábado

A segunda parte do dito, esta sim, por sua vez, diz algo inaudito: “o Filho do Homem é senhor até do sábado”. O Filho do Homem é Jesus (Cf. Mc 2, 10). Ele tem autoridade sobre o sábado, por ser o Senhor da Lei, o seu doador, o princípio, o Legislador. Há de se entender bem, porém, esta autoridade. Jesus, é a autoridade porque se põe à serviço e em função do homem; alguém que não veio para condenar, mas para salvar o homem de toda alienação e em primeiro lugar da alienação da lei. Este é o ponto central do senhorio de Jesus. Senhor (“Dominus”, de cuja palavra nasce “Domingo”), aqui significa, portanto, ser cuidador e protetor da casa (Domus), o que, no fundo, coincide com o ser servo, servidor, do bem de todos e de tudo que se recolhe na pertença de seu cuidado.

Por isso, Jesus não veio para abolir a Lei e os Profetas, mas para cumpri-la e levá-la à sua perfeição e isto – esta culminância ou consumação – se deu na e pela cruz quando, ao dar o último respiro exclama: “tudo está consumado” (consummatum est), (Jo 19,30).

Assim, os cristãos, reconhecendo Cristo como o único senhor, relativizam tudo, também a lei quando esta não estiver em função da salvação do homem. É que, com o mistério da Encarnação se processa uma identificação de Deus com o homem, principalmente com o pobre, doente e pecador: “Tudo o que fizestes a um desse meus pequeninos, foi a mim que o fizestes”. Assim, Jesus, ao dizer que “o Filho do Homem é Senhor também do sábado”, está evocando o nascimento desta nova ordem ou realidade: todo homem, principalmente, o necessitado, doente ou pecador, passa a ser o Senhor do sábado, isto é, superior a toda ordem legal, a todo sistema e a todo “establishment”.

Lutero, ao comentar a frase do “Magnificat”: “dispersou os orgulhosos…” faz o seguinte comentário: “Quando a verdade em si é melhor do que os seres humanos nos quais mora, tanto piores são os sábios do que os poderosos e ricos. Com razão Deus resiste a eles” (“Magnificat – o Louvor de Maria”, Editora santuário e Sinodal, Pág. 90).

Na verdade, a fé cristã, ao equiparar o homem a Deus, em virtude da encarnação, carrega em si um perigoso germe de rebelião que muitos “senhores deste mundo” desejam sufocar ou pelo menos soterrá-la debaixo da avalanche de belas e sedutoras concessões à Igreja.

  • Humanos de coração seco

A segunda parte da perícope começa dizendo que “na sinagoga, havia um homem com a mão seca” (Mc 3,1). O relato é muito significativo. De novo, estamos numa sinagoga e num sábado. Portanto, um lugar e um dia que devem estar orientados para Deus. O olhar de Jesus, porém se fixa num homem que tem a mão paralisada. Se estava doente, pensavam os fariseus, devia ter cometido algum pecado e por isso um condenado que devia ser excluído da comunidade. De repente, Jesus lhe diz: ‘Levanta-te e põe-te no meio’. Os fariseus o estão espreitando. Não é uma provocação, uma indecência colocar um enfermo, um pecador no centro da sinagoga e em dia de sábado? Jesus desafia a todos: “Levanta-te e fica aqui no meio!”  É muita ousadia! Quem julga ele ser, se interrogam os fariseus? Jesus, porém, permanece firme: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal?” Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” (v.4). Fazer o bem equivale, aqui, a curar, salvar uma vida, um homem; fazer o mal, é o mesmo que não curar, deixar perder uma vida, em última instância, em matá-la.

Ora, o que são a sinagoga e o sábado senão lugar e momento para celebrar e promover a vida e não a morte?! Jesus, portanto, em vez de violar o sábado estava dando-lhe seu sentido maior, pleno e verdadeiro: a Misericórdia. No Evangelho de Mateus Jesus diz: “Quem dentre vós, se tem uma ovelha e esta cai num buraco num dia de sábado, não vai apanhá-la e tirá-la dali?”. A casuística dos rabinos não permitia isso. Jesus, porém, segue dizendo: “Ora, o homem vale mais do que uma ovelha! Logo é permitido praticar o bem no dia de sábado” (Mt 12, 12). A conclusão, em Marcos, é tácita. Está implícita. Os seus adversários ficam calados.

Jesus, então “olhando-os ao redor, com um olhar de cólera, condoendo-se com o endurecimento do coração deles, disse ao homem: ‘Estende a mão’. Ele a estendeu e a mão ficou em perfeitas condições” (Mc 3, 5). Marcos gosta de fazer notar o olhar de Jesus ao redor (3, 4; 5,32; 10,23; 11,11). Esse olhar comunica algo de seus sentimentos. Isso mostra bem a humanidade de Jesus, que ele compartilha conosco. A graça do encontro, do amor nasce de um olhar.

Aqui, os sentimentos são de cólera (indignação) e de tristeza. Jesus fica indignado com a malícia e a astúcia dos seus adversários, que se passam por zelosos cumpridores da Lei em geral, e do sábado em especial. Fica, ao mesmo tempo, entristecido com a dureza de coração deles. Eles têm um coração de pedra e não de carne. Não se enternecem e não se compadecem. Assim, enquanto o homem tinha apenas a mão ressequida, os fariseus e mestres da lei tinham o coração empedrado, o que é bem pior.

O homem da mão paralisada somos todos nós descendentes de Adão, nosso primeiro pai que, em desobediência ao mandato divino, estendeu a mão para se apropriar do fruto da árvore do bem, fazendo surgir, assim a árvore do mal no mundo. A partir de então, o bem que queremos, não somos capazes de fazer e o mal que não queremos acabamos fazendo (Cf. Rm 7,12-25).

Mas, Cristo, nosso Irmão maior, diz São Beda, ao estender suas mãos inocentes sobre a árvore da cruz, curou-nos as nossas mãos ressequidas. Eis que sua graça nos tornou aptos para as boas obras e para os frutos das virtudes. Que nos levantemos, pois; que, seguindo sua voz, principalmente domingos, nos ponhamos no meio da assembleia dos chamados; e que estendamos as nossas mãos, para que Ele nos cure; nos faça o bem; nos salve as vidas. Que Ele, com sua graça nos torne aptos a toda a boa obra e aos frutos das virtudes. Amém.

  1. Um tesouro em vasos de argila

Na Epístola deste e dos próximos domingos do tempo comum será lida a Segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Na perícope de hoje (2 Cor 4, 6- 11) Paulo fala do tesouro do conhecimento da glória de Deus no rosto de Cristo, que é carregado por nós “em vasos de argila”, isto é, em fraqueza. “O Deus que disse: brilhe a luz no meio das trevas foi o mesmo que brilhou em nossos corações para fazer resplandecer o conhecimento de sua glória que resplandece no rosto de Cristo” (2 Cor 4, 6).

O verbo grego é “lampo”, que quer dizer: resplandecer, brilhar, mandar luz, lampejar. Este conhecimento do esplendor de Deus no rosto de Cristo é o tesouro que nos foi dado gratuitamente, por pura bondade de Deus. Deste tesouro, portanto não podemos nos gloriar. Ainda mais porque “este tesouro, nós o carregamos em vasos de argila, para que este poder incomparável seja de Deus e não nosso” (2 Cor 4, 7).

 Carregamos este tesouro em vasos de argila, isto é, na condição da finitude de nossa humanidade e “criaturalidade” terrena, bem como na condição da fraqueza pessoal que nos acompanha e que nós trazemos conosco. Por isso, diziam os antigos: Omnia mea mecum porto, isto é, carrego sempre comigo todo o meu ser.

Paulo gosta de apresentar o aspecto paradoxal deste tesouro – o ministério apostólico: “afligidos, mas não vencidos”, “perseguidos, mas não desamparados”, “derrubados, mas não aniquilados,”. Longe dele pensar ou desejar uma situação ideal, cheia de agrados, recompensas ou sucessos, isenta de adversidades ou perseguições. Seria algo de indigno para um chamado-enviado de Jesus Cristo crucificado. Por isso, também, sempre longe dele qualquer pacto ou acordo com os poderes deste mundo que tivesse como objetivo evitar este molesto aspecto dialético da vida cristã e principalmente de seu ministério apostólico. 

O mostrar-se de nossa fraqueza (vasos de argila), porém, não diminui o brilho do tesouro que nos foi concedido. Antes, ressalta o seu brilho, e evidencia que esse tesouro que trazemos conosco não vem de nós, mas é dádiva de Deus, do Pai das luzes (Tg 1, 17). Onde vamos, levamos conosco nossa fraqueza, nossa finitude agraciada, bem como a dádiva do tesouro divino: o conhecimento da glória de Deus no rosto de Jesus Cristo pobre, crucificado.

Experimentamos, assim, em nossa fraqueza, a nossa comunhão com a morte de Jesus Cristo e, na atuação da graça de Deus, a nossa comunhão com a sua ressurreição. Pois, “sem cessar trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus” (v. 10). O sentido original de agonia é luta (agón) mortal. Assim, através de nossa participação nesta luta é que a vida de Jesus também se manifestará em nosso corpo, isto é, a graça da vitória que nos vem dele. “Com efeito, nós os vivos, somos sem cessar entregues à morte por causa de Jesus” (v.11), ou seja, nós morremos com ele continuamente, a cada dia, sempre de novo, “a fim de que a vida de Jesus seja manifestada em nossa carne”, isto é, na fraqueza de nosso ser pessoal e na finitude de nossa condição humana (2 Cor 4, 10-11).

Ser cristão é, pois, a exemplo de Jesus, tomar nossa finitude e fragilidade não como desgraça, mas como graça. É a alegria de ser vaso de argila, ser humano, carregando um grande, precioso, esplendoroso tesouro divino: o conhecimento da glória de Deus no rosto de Jesus: a filiação divina.

Conclusão

Quem, hoje, nos dá uma bela visão do sempre novo e sempre antigo significado do sábado é nosso Papa. Depois de dizer que a participação na Eucaristia é especialmente importante ao domingo e que, à semelhança do sábado judaico, é um dia propício para cuidarmos de nossas relações com Deus, consigo mesmo, com os outros e com o mundo, continua:

“O domingo é o dia da Ressurreição, o «primeiro dia» da nova criação, que tem as suas primícias na humanidade ressuscitada do Senhor, garantia da transfiguração final de toda a realidade criada. Além disso, este dia anuncia «o descanso eterno do homem, em Deus».  Assim, a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa. O ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra realizada o mais importante: o seu significado”.

 “Na nossa atividade, somos chamados a incluir uma dimensão receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inatividade. Trata-se doutra maneira de agir, que pertence à nossa essência. Assim, a ação humana é preservada não só do ativismo vazio, mas também da ganância desenfreada e da consciência que se isola buscando apenas o benefício pessoal”.

“A lei do repouso semanal impunha abster-se do trabalho no sétimo dia, «para que descansem o teu boi e o teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o estrangeiro residente» (Ex 23, 12). O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os direitos dos outros. Assim o dia de descanso, cujo centro é a Eucaristia, difunde a sua luz sobre a semana inteira e encoraja-nos a assumir o cuidado da natureza e dos pobres” (LS 237).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini