Domingo de Ramos

 

DOMINGO DE RAMOS E DA PAIXÃO DO SENHOR

25/03/2018 – Ano B

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: Mc 11,1-10 (Ramos); Is 50,4-7; Sl 21(22),8-9; Fl 2,6-11; Mc 14,1-15,47

Tema-mensagem: Da Paixão que tornou o Filho do Homem Filho de Deus

Sentimento: adoração

Introdução

Depois de 40 dias de penitências quaresmais, dedicados em acompanhar mais de perto os últimos passos de Jesus, chegamos à grande Semana, à Semana de sua Paixão. Hoje, Domingo de Ramos, Jesus entra em Jerusalém montado num burrinho para ser aclamado o novo Rei de Israel, o Príncipe da Paz. É também o dia em que tem início sua Paixão que vai culminar na sua condenação à morte e crucificação.

Estes são, portanto, os dias em que as ações de Deus na história irrompem de um modo todo singular, dias da consumação de sua ação salvadora e misericordiosa na história dos homens.

  1. Um Rei que vem na alegria, na paz e na humildade

Como abertura da Semana Santa a Igreja proclama o evangelho da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, na qual é aclamado pelo povo como seu novo Rei e Messias. A cena parece muito estranha. Durante toda sua vida pública Jesus passou insistindo que ele é Filho do Homem e refutando toda ideia de um rei ou messias triunfalista. Por que agora aceita e até incentiva tal iniciativa?

  • Um Rei que vem montado num jumentinho

A resposta embora estranha é muito simples. O evangelista, além de registrar um acontecimento histórico, tem em mente recuperar e oferecer uma imagem do Messias insólita e esquecida por parte da maioria dos israelitas, principalmente de suas lideranças. Já o profeta Zacarias, por exemplo, havia acenado para um Messias bem distante da imagem de um rei triunfalista e poderoso que seus conterrâneos e contemporâneos exilados na Babilônia aspiravam e suspiravam quando estavam prestes a retornar de seu exílio para a pátria querida: “Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta. Destruirei os carros de Efraim e os cavalos de Jerusalém, e o arco de guerra será destruído. Ele anunciará paz às nações…” (Zc 9,9-10).

         O novo rei virá, portanto, não só na humildade e na paz, mas também para a humildade e para a paz. Por isso, vem montado num jumentinho, símbolo do homem que se submete carregando os fardos de seu senhor. Um rei que, pelo seu silêncio, irá carregar os fardos e pecados de seu povo; que, pela sua morte na cruz irá destruir os carros, os arcos e cavalos da soberba e da guerra; uma morte que será o princípio da morte de todas as vinganças, violências e ódios.

         Assim, Jesus, aclamado como novo Rei, mas montado num jumentinho, em vez de uma caricatura ou deboche expressa muito bem e em imagem muito significativa o que Ele mesmo dirá, mais tarde explicitamente: “Eu sou rei sim e para isto vim ao mundo, mas o meu reino não é deste mundo” (Jo 18,37).  Assim, deste modo, está dado o tom com o qual vai se comportar nos próximos e últimos dias de sua vida, bem como o princípio sobre o qual vai assentar o novo reino que está para instaurar com sua Paixão e morte na Cruz.

  • Hosana ao Filho de Davi

A cena termina com este grito de aclamação: “Hosana, bendito o que vem em nome do Senhor! … Bendito o reino de nosso pai Davi”. Tudo é júbilo, festa, alegria porque Jesus se mostra rei de um reino universal de paz; um rei-pastor, cuidador, um novo Davi, o Ungido (Messias, Cristo), que haveria de reinar sem força e sem violência. Um Rei que não apenas implantará a paz, mas onde ele mesmo será a paz porque é o “Princípio da Vida” (At 3, 15). Nele, por sua Paixão e morte na Cruz, a aliança de Deus com o seu Povo se espraiará para toda a humanidade, envolvendo todas as tribos e línguas, povos e nações de toda a terra e toda a criação.

A saudação do povo diz: “Hosana!”. Aquilo que era, na origem, um grito de socorro (“Te rogo Senhor que me salves!”), agora se torna um grito de júbilo, que aclama o seu Salvador. Este grito quer subir ao mais alto dos céus, pois do mais alto Deus desce ao encontro do homem e da terra, para conceder a salvação universal. No latim, “salus” – saúde – tem o sentido de “vigor essencial, originário da vida” e isso não só ao homem, mas a todo o universo.

  1. A Paixão e a morte

O momento alto da celebração deste domingo é, certamente, a narrativa da Paixão do Senhor e que culmina com sua morte na cruz, narrada por Marcos.

  • A conspiração (14,1-2)

Marcos inicia sua narração testemunhando a conspiração dos chefes judaicos. A história da hipocrisia é sempre a mesma. Quando não se tem motivos para condenar buscam-se, inventam-se. A verdade pouco importa pois antes e acima de tudo o que interessa é a eliminação, principalmente quando se trata de um inocente. Por que será que o inocente incomoda, perturba? Não será porque com sua pureza revela, espelha o que os malvados, corruptos e criminosos deveriam ser e não têm coragem de se assumir!? No inocente eles veem sua covardia que os incomoda e condena. E é bem assim, isto é, com uma conspiração dos sumos sacerdotes e escribas que começa a história da Paixão e morte do Inocente dos inocentes, Jesus Cristo:  “Os sumos sacerdotes e os escribas procuravam uma ocasião para prender Jesus à traição e matá-lo” (Mc 14,1).

  • A unção do amor (14,3-9)

Logo em seguida vem a cena da unção de Jesus por parte de uma mulher que inesperadamente entra na casa de Simão, dito “o leproso”, por ocasião de uma ceia. O gesto mais que insólito e impróprio para aquele tempo e aquele momento é sumamente simbólico. Marcos não diz quem seria aquela mulher, justamente para significar, provavelmente, a Igreja peregrina ou quem sabe a alma humana que reconhece em Jesus o ungido de Deus que veio, como esposo, para ampará-la como sua esposa desolada e perdida.

O gesto desperta calorosa discussão entre os comensais, tendo como centro o desperdício, pois, argumentavam eles, com o valor daquele perfume se poderia alimentar muitos pobres. Jesus, porém, e de novo, põe em realce o “seu tempo”, isto é, o tempo de o esposo estar com sua esposa; o tempo em que, por isso, os deveres religiosos do jejum (Mc 2,19), da esmola (Mc 14,5), da oração não podem sobrepor-se a Ele, uma vez que Ele é o Senhor do Sábado, do jejum, da esmola e da oração. Na vida cotidiana de um cristão nada pode sobrepor-se ao seu Senhor. Nem mesmo o triunfalismo contido na exaltação da libertação dos pobres. Os homens tendem a absolutizar, até mesmo o fruto legítimo e necessário de uma verdadeira luta em favor dos pobres.

Assim, esta mulher, está proclamando, também ela, que Jesus, o Filho do Homem, não é o Messias triunfalista, tão sonhado e desejado por muitos, até mesmo por alguns dos seus discípulos mais próximos. Por isso, ela não sabe demonstrar sua fé, expressar seu amor e sua gratidão com outro gesto, senão derramando sobre a cabeça de Jesus aquele precioso perfume, proclamando, assim, sem o saber, que Aquele Jesus é o “ungido” com um óleo de alegria (Sl 45,8), o Salvador esperado por todos.

  • A traição do amigo (14,10-11)

Segue então, a emblemática traição de Judas, um dos mais próximos seguidores de Jesus. Qual a razão deste ato tão desconcertante? Aqui se diz unicamente que os líderes judaicos haviam lhe oferecido dinheiro. Seria, pois, a ganância? Outra hipótese seria a decepção. Judas talvez teria uma ligação bastante estreita com a ala extremista e radical dos revolucionários zelotes que pretendia expulsar os romanos do território judaico pela violência. Ora, Jesus sempre menosprezara as autoridades nacionais. Por isso, Judas teria entrado em acordo com elas a fim de entrega-lo, eliminando, assim um possível quinta-coluna, um inimigo de uma pretensa e futura revolução.

  • A nova Páscoa (14,12-25)

Vem então a cena da Última Ceia. A iniciativa de celebrar aquela que era a maior festa religiosa dos judeus, expressa claramente que Jesus não veio abolir mas levar à plenitude a lei, os profetas e acima de tudo a antiga aliança. Por isso e agora faz questão de reunir-se com seus discípulos para no dia em que se “imolava o cordeiro pascal, comer a Páscoa” (12).

Feitos os preparativos, a cena da Última Ceia começa com esta desconcertante afirmação de Jesus: “Em verdade vos digo que um de vós, que come comigo, vai me trair” (18). Parece concretizar-se, assim, o que salmista já havia, profetizado: “Até mesmo o amigo em quem eu confiava, até ele, que comia pão comigo levantou contra mim seu calcanhar” (Sl 41,10). Judas, no caso, entra aqui mais como um personagem do que como uma figura histórica. Ou seja, a traição deste amigo de Jesus nos fala de nossas traições, diz como e quanto é difícil manter-se fiel à amizade, ao amor de quem nos ama! Judas, portanto podemos ser cada um de nós.

Todavia, como ponto de partida, a fim de pôr em evidência o profundíssimo significado daquela ceia especialíssima – a última, a tão esperada e desejada por parte de Jesus – nossos olhos não podem distanciar-se dessa sua enigmática afirmação: “O Filho do Homem, segue seu caminho…” (21).

Seguir seu caminho não é evidentemente, uma expressão comum para dizer que ele vai morrer. Com esta expressão fica claro que Jesus está entendendo sua morte não propriamente como uma morte, mas como um caminho, um princípio de vida, um momento para “seguir o que está escrito”. Ora, o que está escrito para Ele, em seu coração, não é a Lei mosaica, e nenhuma outra coisa senão fazer a vontade do Pai, sofrer, carregar sua Paixão. Isto, porém não tira a culpa do homem – Judas, no caso – que livremente intermedeia a traição. Daí a afirmação: “Mas, ai daquele que trair o Filho do Homem…” (28). Sim, “Ai”, isto é, coitado, que infeliz, que pena! Como pode alguém abandonar, atraiçoar o amigo, o amor de sua vida, por outros interesses vãos e desprezíveis!? Como pretender apagar a marca indelével da alegria da graça do chamado?!

Mas, em que consiste a vontade, a Paixão do Pai senão inaugurar uma nova aliança? Por isso, no meio da ceia, Jesus introduz um gesto, um rito inédito e uma surpreendente novidade: “Tomou o pão e tendo pronunciado a bênção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: “Tomai, isto é o meu corpo” (22).

Certamente, perplexos, os discípulos não têm palavras para expressar o espanto diante de um gesto tão misterioso. Já haviam assistido a milagres estrondosos como o da multiplicação dos pães, da cura de doentes, da libertação de enfermos de suas doenças e de seus demônios, mas esse supera a todos por sua inaudita novidade.

A novidade é muito clara, embora, provavelmente, na hora os discípulos não a tenham entendido: agora, tinham uma nova Páscoa na qual Ele mesmo – seu Senhor e Mestre – é a vítima e em cujo sangue que será derramado se estabelecerá um pacto não mais e apenas com o povo de Israel, mas com “muitos”, isto é, com a humanidade toda. Assim, a nova ceia pascal se desenvolve não apenas numa ceia de confraternização, mas também na entrega aos discípulos da missão de lutar contra tudo aquilo que discrimina os indivíduos e os grupos humanos, até mesmo os traidores, como Ele não discriminou Judas.

  • A caminho da solidão e do abandono total (14,26-42)

Terminada a Ceia Jesus, acompanhado de seus discípulos, se dirige para o monte das Oliveiras onde lhes anuncia a sua dispersão e profetiza a negação de Pedro. Pedro, no caso, se parecerá com um daqueles pastores insensatos e selvagens do profeta Zacarias (Zc 11,15-17) que se  escondiam porque tinham medo de serem descobertos em suas safadezas e falsidades. Fica então a pergunta: Como poderá Jesus escolher para exercer o cargo de vice-pastor alguém que o nega, que se esconde de medo, de vergonha e foge? De novo, estamos diante do mistério do “abaixamento” de Deus. Deus não tem vergonha de fazer-se representar em pessoas frágeis, humildes e pecadoras como Pedro e cada um de nós.

Chegando ao Getsêmani Jesus se afasta do grupo. “Levando consigo apenas Pedro, Tiago e João começou a sentir pavor e angústia” (33). “Então lhes disse: “Minha alma está triste até a morte. Ficai aqui e vigiai” (34). Dada esta ordem se retira mais ainda ficando totalmente só. Prostrando-se por terra implorava o Pai para que, se possível, lhe fosse afastado aquele cálice.

Alguém poderia estranhar e até criticar esta postura de Jesus que, neste momento supremo de sua vida, tão importante para a humanidade toda, não soube assumir uma atitude de “homem”, mais corajosa; que não soube enfrentar a morte com serenidade ou até certo desprezo, a exemplo do filósofo grego Sócrates. A descrição de medo e angústia diante da morte, porém, é coerente com a cristologia do Filho do Homem presente em todo o segundo Evangelho. Jesus não veio para dar uma de herói, de super-homem, mas de ser um humano como todos e cada um de nós. Quer nos amar como somos, pois só assim poderá nos salvar a partir de dentro, de nossa fragilidade e não de uma pretensa superioridade ou competência.

  • A Prisão (14,43-52)

Segue, então a cena da prisão, proporcionada com o beijo da traição do discípulo e amigo Judas. Mais que tudo, o que importa contemplar aqui, é o ensinamento que nos vem da atitude de Jesus. Não só não se defende, mas repreende até mesmo aqueles que querem defendê-lo, como no caso, Pedro que puxou da espada ferindo o empregado do sumo sacerdote. Desconcertante o gesto e a atitude de Jesus! Como compreendê-los? O segredo está na palavra “amigo”, em cuja raiz encontramos a palavra “amor”. Ora, tudo o que vem do amor, mesmo o que, aparentemente nos contraria ou ofende, só pode ser benéfico e por isso deve ser bem aceito. Só não deverá ser aceito, se vier a prejudicar nossa alma, dirá, mais tarde, São Francisco.

Há, pois, uma grande incoerência nessa prisão. Jesus jamais falara algo às escondidas, jamais fizera algo de clandestino que viesse a fazer oposição seja ao regime romano seja aos maiorais do judaísmo. Havia sim optado por sua missão profética falando claramente da essência da religião judaica, recebida de Deus através de Abraão, Moisés e dos profetas. Todos puderam ouvi-lo livremente no templo, nas sinagogas, nas praças e povoados. Por que, então, todo este aparato belicoso? Novamente, a cena parece realçar a diferença entre o caminho do Filho do Homem e o caminho dos filhos dos homens. No primeiro, a humildade e a submissão, no segundo a soberba e a prepotência.

  • O julgamento pelo Sinédrio (14,53-65)

O desenvolvimento do processo movido contra Jesus, assim como vem apresentado pelo evangelista, expõe uma série de irregularidades, até mesmo em relação à legislação judaica. Tudo porque acima de tudo e antes de mais nada importava chegar a uma sentença rápida e severa: a morte e morte de Cruz. Sim, pois nenhuma outra pena ou castigo podia demonstrar mais claramente ao povo a falsidade das pretensões messiânicas de Jesus, uma vez que estava escrito na Lei que se deveria considerar “maldito todo aquele que fosse suspenso no madeiro” (Gl 3,15; Dt 21,23).

Depois de arrestadas inúmeras testemunhas que tentaram incriminar falsamente Jesus, entra em jogo a questão essencial de todo o processo: “Tu és o Messias, o Filho de Deus bendito?”, pergunta-lhe o sumo sacerdote. Se até então Jesus permanecera calado diante de todas as acusações, agora responde claramente: “Eu sou…” (62). Novamente, a resposta de Jesus é coerente com toda a cristologia do Filho do Homem que impregna todo o evangelho de Marcos: Ele é, de fato, o Messias, não pode e nem deve negá-lo. Mas, não o Messias triunfalista, político com o qual sonhavam os líderes do movimento anti-romano. Era antes, o Messias pacífico, humilde, misericordioso e paciente, profetizado por Isaias “como tão desfigurado que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano” (Is 52,24).

 Aos ouvidos do sumo sacerdote, porém a resposta soava como blasfêmia a ponto de levá-lo a um dos mais expressivos gestos de protesto e condenação: rasgar suas vestes sagradas de sumo sacerdote. Sim, como podia aquele leigo, um simplório nazareno, filho da terra dos pagãos, macular o sagrado nome de Messias pretendendo encarnar ridiculamente em sua pessoa as esperanças que o povo de Deus vinha cultivando através dos séculos acerca de sua grandeza de Jahvé?

2.8. O pranto de Pedro (14,66-72)

Vem então a negação de Pedro seguida de seu pranto copioso. Chama-nos a atenção o paralelo entre a confissão de Jesus e a negação de Pedro. Enquanto Jesus se declarava pública e solenemente o Messias, Pedro o renega vilmente, não pela força de um tribunal, mas de uma simples e inócua pergunta de uma pobre e humilde criada curiosa. Não há nenhuma ameaça de prisão ou morte. Somente a vergonha de ser tido como companheiro e discípulo de um mestre que começava a ser considerado pelas autoridades e pela opinião pública ridículo, vergonhoso e maldito.

Para a comunidade cristã do Evangelho de Marcos, a partir da ele escreve, Pedro era certamente uma “pedra” e o “Pastor-vigário” do Sumo Pastor Jesus Cristo. E é esta, justamente, a razão de ser apresentado em sua fraqueza: a negação de sua fé. A comunidade cristã não haverá jamais de faltar a fé em Pedro pelo fato de ter se mostrado tão frágil, de haver caído e renegado o mestre. Para que continue sendo a “pedra” o que se espera dele é algo mais importante e essencial: que chore sua fraqueza, seu pecado. Assim, os pastores da Igreja são aceitos e reconhecidos como tais não por seus atos heroicos ou por serem santos, mas justamente porque não têm a pretensão de sê-lo; porque estão dispostos a reconhecer sua fraqueza na confissão da própria fé. E se muitas vezes os pastores da Igreja não são aceiros é justamente porque não são capazes de se humilhar para reconhecer que erraram e que continuam pecadores.  

2.9. O tribunal romano (15,1-15)

A partir de então Jesus é conduzido perante o tribunal do representante do império romano uma vez que os judeus, submetidos aos romanos, não dispunham de nenhuma autoridade para condenar à morte quem quer que seja. Pilatos se defronta, então com um fato novo e inusitado: os judeus, em vez de proteção estavam pedindo-lhe a condenação de alguém dentre eles que se apresentava como o seu Messias, o seu rei. Mas, percebe logo que a razão da intriga dos chefes religiosos não era outra senão o medo da perda de sua autoridade perante o povo. Por isso, ele não se perturba perante a pretensão messiânica e régia de Jesus uma vez que esse não oferece nenhum perigo de insurreição. A autoridade dele, Pilatos, ou de Roma não está em jogo. Por isso, simplesmente interroga-O: “Tu és o rei dos judeus?” (Mc 15,2). Pilatos, porém, se maravilha porque após ter recebido a resposta afirmativa de que Ele é realmente Rei, Jesus permanece em silêncio. Não se defende diante das inúmeras e falsas acusações que as autoridades religiosas judaicas lhe arrogam. Jesus responde com a fala da inocência, a fala de Deus: o silêncio.

A esta altura o procurador romano já estava seguro de que Jesus não viria causar-lhe qualquer transtorno. Mas como político esperto não deixa de passar a ocasião para faturar conveniências pessoais. Procurando, então satisfazer a multidão “mandou flagelar Jesus e o entregou para ser crucificado” (15).  Mais uma vez o evangelista Marcos faz aparecer com muita clareza o princípio teológico, ou melhor cristológico de seu evangelho. Jesus jamais se preocupou ou disse algo contra os zelotes. Mas, ao contrário, contra os fariseus, escribas, saduceus e sacerdotes, sim, falou muitas coisas, muitas vezes, muito claramente e com muita aspereza. Mas, também, é verdade, jamais condividiu a ingenuidade dos zelotes, que pensavam que, com o seu poder nacionalista, uma vez desmantelada a ocupação romana, haveriam de transformar em fartura de bens materiais a pobreza daquele seu povo oprimido e escravizado. Pois, Jesus era só um profeta e um profeta, cedo ou tarde, é e será sempre um incômodo para todo e qualquer tipo de poder.

  • A crucificação (15,21-32)

Chegamos ao ponto mais alto de toda a Via crucis: “Levaram-no para fora a fim de crucificá-lo” (20). Mais que um fato, estamos diante de um ato único, insólito cujas consequências e benefícios vão se estender do monte Calvário para o céu e para todos os recantos do mundo, da criação, da história e da humanidade. A partir da crucificação, o mundo, a criação, o céu e a terra e nem mesmo Deus não serão mais os mesmos. A Paixão de Deus será a paixão de todos os homens e a dor, o sofrimento e a paixão dos homens serão a dor, o sofrimento e a paixão de Deus.

Expressando o mistério dessa nova existência humana, Santa Clara exortava sua co-Irmã Inês a “fortalecer-se no santo serviço, iniciado pelo ardente desejo do Pobre Crucificado, que, por todos nós, suportou a Paixão da cruz, arrancando-nos do poder do príncipe das trevas, ao qual estávamos presos pela transgressão dos primeiros pais, reconciliando-nos com Deus Pai” (1CCL 13-14).

A cena da crucificação narrada por Marcos é muito simples. Antes de chegar ao topo do monte, Jesus, já inteiramente desfalecido, precisou de ajuda para carregar a cruz. Não nos parece difícil de ver naquele desconhecido, Simão Cirineu, escolhido para ajudar Jesus a carregar sua Cruz, a humanidade toda, convidada para, a modo de um grande mutirão, unir-se a Ele nesta sua missão de carregar a cruz redentora e salvadora. Notemos, porém que não são os mandantes e comandantes, mas os simples, os “joão-ninguém” que realizam esse sagrado ministério.

Na cruz, seguindo um costume judaico, os soldados oferecem a Jesus uma bebida narcótica a fim de aliviar-lhe a dor e a consciência. Jesus, porém, negando-a, mostra claramente que sua decisão é de beber, saborear conscientemente, sem nenhuma dissimulação e até a última gota de seu sangue, o cálice da vontade, do amor, da paixão do Pai.

No alto da cruz a inscrição “O Rei dos judeus”, chamava à chacota, à gozação, embora fosse essa a verdadeira razão pela qual, hipocritamente, tanto as autoridades romanas como as judaicas agiam com tanta diligência, veemência e crueldade. Mas, foi e é assim, sempre, e por toda a parte: até para isso, para o nosso deboche, nossas brincadeiras, Deus nos serve e se deixa manipular por nós. Quanta pobreza e despojamento!

Vem, então, mais uma confirmação da cristologia de Marcos, assentada na fragilidade. Diante da provocação: “Tu que destróis o Templo e o reedificas em três dias, salva-te a ti mesmo, desce da Cruz” (30) Jesus permanece em silêncio. Ora, Ele não veio para tirar os pobres humanos da riqueza de sua fragilidade a fim de transportá-los para a ilusão do poder do mundo e da vanglória dos milagres. Veio, antes para recolocá-los, pregá-los ainda mais sobre a cruz do salvador mistério da fragilidade humana – a cruz redentora que Adão desprezara.

 

  • Enfim a solidão da morte (15,33-36)

Enfim, a prova maior de todas as cruzes: “Pelas três horas da tarde, Jesus gritou com voz forte: ‘Eloi, Eloi, lama sabactani?’ Que quer dizer: ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” É o abandono de tudo e de todos, até mesmo do Pai. Agora Ele está só. Ele e sua Paixão. As trevas que se abatem sobre o monte Calvário indicam a solene presença do julgamento de Deus frente ao manancial messiânico da presença do Filho do Homem.

A narração da paixão de Jesus segundo Marcos culmina neste clamor: “Eloi, Eloi, lamá sabactáni?”. “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” O que aqui clama é o abandonado. Neste clamor ressoa algo da sua intimidade com o Deus que o abandona, ao qual ele chama de “meu Deus”.

No evangelho de Marcos, o abandonado é Jesus Cristo, o Filho de Deus. E o Deus do abandonado é o próprio Pai. A cruz é o cume da revelação da vida íntima de Deus. Ela penetra, como uma espada, na íntima relação entre Filho e Pai, bem no cerne desta intimidade, que é amor, e, portanto, entrega. Penetra, distanciando. Mas, na distância, cria-se uma proximidade. Penetra, separando. Mas, na separação, cria-se uma intimidade e comunhão. Na ausência, cria-se uma vigência. A dor da separação, do abandono, paradoxalmente, cria comunhão entre o abandonado e o seu Deus. Assim a cruz se torna elo. Revela unidade. É o ponto de salto da nova criação, do novo Céu e da nova Terra. É o vir à luz da unidade primordial entre o Divino e o Humano. A cruz é a fenda, onde tudo se entrecruza. Percussão que repercute em todas as coisas, mostrando que tudo é Um. Assim, enquanto a haste vertical, nascida da terra, sobe até o céu e penetra o íntimo de Deus, a haste horizontal cruzada e sustentada pela vertical percorre e invade os horizontes de toda a humanidade, de toda a história e de todo o universo levando a todos e a tudo a salvadora jovialidade do novo Adão.  

O grito “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” revela, na dor do amor, a íntima vida de Deus em Deus: a relação entre Pai e Filho no Espírito Santo (o Sopro Santo do Amor).

Na meditação de frei Harada lemos:

Portanto, a experiência do afastamento de Deus, o tormento e o desespero dos condenados pelos pecados, o inferno dos que foram abandonados por Deus, tudo isso e mais, Jesus, o Filho de Deus, enviado pelo Pai, ele, o Inocente, sem pecado, o predileto do Pai, carrega sobre si, carrega a culpa, o castigo, o abandono pelo Pai, em expiação pelos pecados do mundo. Por sua paixão e morte, todos nós fomos e estamos salvos. E depois dessa inaudita obra da salvação todas as dores, sofrimentos, humilhações e opróbrios da humanidade recebem um sentido, o de ser participação no sofrimento de Jesus Cristo Crucificado, e assim colaborar para a realização escatológica do reino de Deus.

  • O grito de Deus (37-47)

Para Marcos, quem está gritando é um Deus que se fez homem, um Deus humanado que chega ao extremo de sua fragilidade e de sua angústia. Lembremos que na Sagrada Escritura a morte é sempre apresentada como um mal que nos separa de Deus. Pois bem, agora, Cristo, com este seu grito, com sua morte vem derrubar também este abismo. Por isso, exclamará depois, São Paulo: “A morte foi tragada pela vitória. Ó morte onde está tua vitória? Ó morte onde está teu aguilhão?” (1Cor 15,55).

Enfim, o momento mais solene e decisivo de toda esta Paixão, solene e decisivo tanto para a humanidade como para Deus mesmo! E como convém a tais momentos, também este vem descrito de modo muito simples e resumido: “Então, Jesus deu um forte grito e expirou”. Enfim, deu tudo, até mesmo o que tinha de mais sagrado: seu ar, seu espírito, sua alma, seu hálito, seu sopro vital.

Expirou, significa que ele soprou para fora, para o mundo, para a história, para a humanidade, para a criação toda, sua Paixão, seu Amor, a Paixão e o amor de seu Pai. Dá-se, assim o início da nova criação, do novo céu e da nova terra. Os sinais são evidentes. As cortinas que no templo protegiam, separavam o sagrado do resto do mundo, do profano, se abrem, se rasgam. Assim, com a  morte de Jesus, o Santo dos santos não apenas se torna acessível a todos, mas começa a invadir o universo transformando o Deus de Israel no  Deus de todos os povos, de todos os homens. Eis porque logo em seguida, o oficial romano, representante de todos os impérios da época, exclama e testemunha, até mesmo antes dos Apóstolos: “Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus” (39). Enfim, o verdadeiro milagre: a Paixão do Pai, assumida pelo Filho do Homem, desde que veio a este mundo até o último suspiro, tornou-o Filho de Deus.

Agora, só resta a Jesus deixar que retirem seu corpo da cruz para ser levado para dentro do seio de nossa irmã a mãe terra a fim de que, à semelhança do grão de trigo, possa nascer de novo e dar muitos frutos. Ou seja, afim de que esta história se renove e frutifique no coração de cada criatura e de cada comunidade.

Conclusão

O Domingo de hoje quer introduzir-nos no mistério central e mais profundo, no sentido maior, primeiro e último de nossa vida: a Paixão de Jesus Cristo que é por sua vez a Paixão de Deus nosso Pai e que, por conseguinte, deve tornar-se também nossa Paixão. Paixão é certamente o sentimento maior e mais profundo de uma pessoa. Há quem mate, mas também quem dê sua vida movido por esse sentimento.

Assim é o nosso Deus. Ele se deixa matar por nós, se dá a nós inteira e continuamente, a modo de fonte que faz jorrar ininterruptamente a água da vida, dá-se a nós na fraqueza e na loucura da Cruz (1 Cor 1,25). “De rico que era, fez-se pobre”, de santo se fez pecador e pecado para nos enriquecer com sua pobreza e santidade (cf. 2 Cor. 8, 9). É o mistério da pobreza, da humildade, da simplicidade, do Filho de Deus que se fez filho do homem – mistério que apaixonara e enternecera São Francisco de Assis a ponto de fazer dele o sentido de todo seu viver e morrer como vem muito bem registrado nesta passagem: “Desde aquela hora, seu coração de tal modo ficou ferido e derretido ante a memória da Paixão do Senhor, que sempre, enquanto viveu, levou em seu coração os estigmas do Senhor Jesus c, como posteriormente apareceu claramente pela renovação dos mesmos no seu corpo, admiravelmente realizados e clarissimamente demonstrados” (LTC 14).

Falando da frieza e banalização com que, muitas vezes nós cercamos ou comentamos este mistério, assim se questionou Bonhoeffer, mártir da segunda guerra mundial, numa carta endereçada a E. Bethge, da cela da prisão, na época da páscoa de 1944:

Pela segunda vez vivo aqui o tempo da Paixão. Me revolto interiormente, porém, quando leio nas cartas (…) as expressões que falam do meu “padecer”. Isso se me apresenta como uma profanação.

Não se devem dramatizar estas coisas. […] Creio que aqui alguma coisa tenha de ser corrigida; sim, para dizer sinceramente, às vezes quase me envergonho do quanto nós falamos do nosso sofrimento pessoal. Não, padecer deve ser algo de totalmente diverso, deve ter uma dimensão totalmente diversa, em relação àquilo que vivi até agora.

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini