5° domingo da Quaresma

5º DOMINGO DA QUARESMA

18/03/2018 – Ano B

Pistas homilético-franciscanas

 

Leituras:  Jr 31,31-34;  Sl 50 (51); Hb 5,7-9; Jo 12,20-33

Tema-mensagem: Aos estrangeiros gregos que desejam vê-Lo e conhecê-Lo Jesus responde de forma enigmática que Ele é e deve ser como um grão de trigo que deve ser tragado pela terra a fim de produzir muitos grãos.

Sentimento: Humildade e gratidão

Introdução

Há quatro semanas, estamos nos empenhando para nos aproximar sempre mais de Jesus. Queremos vê-lo, segui-Lo e servi-lo cada vez mais e melhor. Este desejo não é só nosso, mas, também, de todos os homens, queridos e amados por Deus. Eis o mistério que celebramos hoje, 5º Domingo da Quaresma, iluminados pelo Evangelho que proclama a história de um grupo de peregrinos gregos que foram a Jerusalém e que queriam ver a Jesus.

  1. A história de um povo assentado numa aliança sagrada

Quem nos introduz neste mistério é o profeta Jeremias com seu anúncio acerca da nova aliança que Javé haverá de estabelecer com seu povo eleito, denominado com este honroso e admirável título: “Povo da Aliança”!

  • Uma experiência dolorosa e dramática

O texto escolhido para a primeira leitura de hoje é muito breve, denso e sintomático, pois em apenas três versos, repete por quatro vezes, com profunda afeição: “Diz o Senhor!”. Sim, esse “Diz o Senhor” revela que estamos diante de um homem que entrou e vive na intimidade de Deus, um homem que vê, fala e sente Deus: um verdadeiro profeta.

E a primeira coisa que ele via e sentia era uma história de dor e vergonha. De um lado, um Deus que por pura afeição e iniciativa própria, estabelecera com seu povo uma aliança de amor, selada com sacrifícios e gravada em pedras para que todos, presentes e futuros, a pudessem ver, amar, entender e observar. Mas, o que profeta estava vendo eram mil anos de contínuas violações de apenas de uma das partes: justamente, o Povo eleito. Assim de “Povo da Aliança”, os israelitas só tinham mesmo apenas o título, nada mais. Tornara-se o “Povo da infidelidade”.

De outro lado, Jeremias via os esforços da misericórdia de Deus, que, a modo de um dedicado e amoroso esposo, não conseguia eliminar a cegueira, muito menos comover o coração endurecido de sua esposa amada. Assim, aquela Aliança, coisa inédita e inacreditável para os povos vizinhos, que tinham de se submeter a deuses opressores e vingadores, ia não apenas se deteriorando, pouco a pouco, mas também se reduzindo a uma mera casca artificial de observâncias externas e vazias.

Por isso, sentia necessidade de proclamar, alto e bom som, para seu povo, que tanto amava e pelo qual tanto sofria, o sentido de toda a riqueza daquela experiência divina de ser o “Povo da Aliança”. Ou seja, que a aliança celebrada no Sinai e tantas vezes violada e renovada devia ser vivida de modo inteiramente oposto ao que estavam vivendo e praticando até então. Ou seja, era urgente uma conversão interior, um retorno ao júbilo de uma observância de leis nascida da liberdade do amor de Deus e não do medo do poder da escravidão.

1.2. A Promessa de uma nova Aliança

Os israelitas haviam esquecido que a essência da aliança é pacto de amor. E, vice-versa, que o amor, em sua essência, é sempre um pacto, um vínculo de mútua disponibilidade e de mútua entrega entre parceiros livres. Em grego, “aliança” se diz “diathêkê”: disposição.

Se até então, a aliança ficara reduzida apenas a tradições e ritos meramente exteriores e jurídicos, escritos em pedras, agora “virão dias” em que a religião será algo pessoal, interior, vivida de modo sobrenatural; uma lei impressa no íntimo da alma, no coração, no âmago do ser, isto é, no centro pulsante da vida, de onde provêm o viver e o sentir, o pensar e o querer, o compreender e o amar. A relação Eu-Tu, Deus-Povo poderá ser aperfeiçoada, completada, sim, mas jamais rompida ou anulada. É o que promete o Senhor: “Eu mesmo imprimirei minha lei em suas entranhas e hei de inscrevê-la em seu coração” (Jr 31,33).

O conhecimento de Deus será, pois, a marca desta nova aliança, dessa nova disposição. Conhecer, que tem sua origem na graça do encontro, do enamoramento e que significa, por isso, “nascer com”, confiar, crer, isto é, ser transformado, assimilado, assemelhado, igualado, identificado, com Aquele que nos ama. Trata-se de um vínculo íntimo, fundado no amor. Enfim, conhecer, aqui, é amar e amar é conhecer – como acontece claramente no encontro entre dois amantes. Neste sentido conhecer é comungar da vida do outro como o diz muito fortemente São João: “Todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Quem não ama não descobriu a Deus, porque Deus é amor” (1 Jo 4, 7b-8). A plenitude deste conhecimento de Deus é a vida eterna: “E a vida eterna é que eles te conheçam a ti, o único verdadeiro Deus, e àquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3). Eterna, significa, uma experiência que jamais se apagará.

A este novo estado de coisas, a esta relação nova, viva, direta, imediata e “experiencial” com Deus e com os homens – a Boa Nova – esta nova humanidade, enfim, na qual não vingarão mais as aparências, as ostentações, os subterfúgios e as simulações dos hipócritas e fariseus, Jeremias chama de “Povo da Nova Aliança”. Uma aliança que Cristo assinala com seu sangue no alto da Cruz e que a partir dos Apóstolos, milhões e milhões de pessoas também verteram o seu para vive-la e outras milhões e milhões continuam a servir-se dela para abrir caminhos para a instauração do Reino de Deus em todas as partes do mundo.

  1. Na cruz a glória e o princípio da nova humanidade

O discurso de Jesus no trecho do Evangelho de João, proclamado hoje, tem uma direção muito clara e precisa: “indicar aos discípulos de que morte iria morrer” (Jo 12,33). Mais especificamente ainda, certifica-los, com a autoridade da “voz vinda do céu” (Jo 12,28), que sua morte na cruz não será uma vergonha, mas uma glória; que, em vez de uma morte, será o princípio de uma nova vida para eles e para toda a humanidade. É por essa razão que este Evangelho, foi escolhido como uma espécie de preparação para a grande semana, a Semana Santa que celebraremos daqui a oito dias: a Semana da glorificação do Pai na glorificação de seu Filho Jesus Cristo crucificado.

2.1. Os estrangeiros gregos desejam ver Jesus

O Evangelho começa com a cena dos gregos piedosos que haviam subido a Jerusalém com outros judeus, como peregrinos, para adorar a Deus. É a partir deste desejo que se dirigem a Filipe, de Betsaida da Galileia (terra em que os judeus se misturavam com os gentios): “Gostaríamos de ver Jesus”. É muito evidente o sentido que o evangelista quer dar à entrada em cena desses gregos: que os pagãos, representados por eles, isto é, todos os não judeus, tem sede de Jesus; que Jesus é o “Filho do Homem” de todos os homens, a Fonte de água viva, o Deus que todos desejam, esperam e procuram. Ou seja, que está chegando para o mundo, para a humanidade toda, “a Hora”, o tempo de Jesus, a hora, o tempo da sua paixão-glorificação; a hora da universalidade do seu Evangelho; uma Boa Nova para judeus e gregos, ou seja, para todos os homens; a hora, enfim, em que Jesus será proclamado “o Salvador do mundo” (ho sotér tou kósmou) – (Jo 4, 42).

Segundo Santo Agostinho, a Cidade de Deus, a Igreja, é formada por duas muralhas, que se encontram e “se reúnem por um ósculo de paz na mesma fé de Cristo”, a pedra angular.

  • Está chegando a hora

Parece um tanto estranho. Na descrição que o evangelista faz desta cena não aparece nenhum sinal de que Jesus tenha atendido o desejo dos gregos intermediados por Filipe. A razão é muito simples. É que João não segue a lógica dos fatos, mas da evangelização. Ou seja, os pagãos só podiam ver Jesus através da pregação dos Apóstolos que se iniciará somente após a Ressurreição, mais precisamente, após a vinda do Espírito Santo, no Pentecostes. Jesus não podia, pois, dar-lhes uma resposta direta agora. Por isso, trata de anunciar-lhes o princípio só a partir do qual poderão vê-Lo: “É chegada a hora em que o Filho do homem deve ser glorificado” (Jo 12, 23). Ou seja, só poderão vê-lo se olharem para a Cruz e o aceitarem como “Filho do Homem” crucificado. Fato que ainda estava por acontecer.

Mas, a resposta de Jesus pode significar, também e primeiramente, uma exortação ardorosa para si mesmo e para seus discípulos. Pois, estava chegando a hora de consumar o serviço, a obra, a missão que o Pai lhe confiara; que era preciso reunir todas as forças a fim de não voltar atrás, cedendo  às tentações do demônio no deserto, mas de beber até a última gota do cálice da vontade do Pai; era preciso não perder de vista o momento histórico de Deus e de toda a humanidade: a implantação do Reino de Deus – pela sua morte na cruz – no coração do mundo e de cada homem e de cada criatura – o princípio, a força originária do novo “Povo da Aliança”: o gérmen da Cruz.

Por isso, ele continua dizendo: “Em verdade, em verdade, eu vos digo, se o grão de trigo que cai em terra não morre, ele fica só; se, ao contrário, ele morrer, produzirá fruto em abundância” (Jo 12, 24).  Ou seja, o modo tão radicalmente inocente de Jesus entregar-se aos seus malfeitores e inimigos perdoando-os e implorando-lhes ao Pai o perdão, faz tremer o céu e a terra. Diante de tão inaudito amor os corações empedernidos pelo egoísmo, a exemplo das rochas da sexta-feira santa, terão que se fender e comover; os olhos tomados pela cegueira das coisas deste mundo terão que se abrir; os mortos tomados pela tristeza individualista de um coração comodista e mesquinho (EG 2) haverão de ressuscitar. Eis o grão de trigo, que, jogado na terra reunirá, depois, numerosos grãos vindos a formar uma única espiga: o Povo da nova Aliança, entendido como Assembleia – Igreja – universal enviada a abraçar os homens de toda a Terra e jamais esquecer do preço com que foi conquistado: o sangue da Cruz. Por isso, toda vez que ela quiser ser uma Igreja triunfante ou triunfalista neste mundo (segundo o mundo), permanecerá só.

Séculos mais tarde, como na Igreja primitiva, em meio a uma cristandade que corria o risco de entender-se de modo mundano, “triunfante” ou triunfalista, Cristo crucificado, aparecendo misteriosamente a um jovem de Assis, fez-se o princípio de uma nova e numerosa família de filhos de Deus na Igreja Católica: a Ordem de São Francisco. É o que se pode ler nesta passagem: “O nosso Bem-aventurado pai Francisco, tanto ele como os seus, foram chamados por Deus, da cruz e para a cruz. Por isso, ele e os seus demais Bem-aventurados, primeiros companheiros, eram, com razão, vistos como, e de fato eram, homens do Crucificado. Carregando a cruz no vestir e no comer, e em todos os seus atos, desejavam mais os opróbrios de Cristo do que as vaidades do mundo e as lisonjas enganosas; por isso, alegravam-se pelas injúrias e entristeciam-se pelas honras. E iam pelo mundo como peregrinos” (Atos 4).  

  • Perder a alma para ganhá-la

Segue, então, e logicamente, a admoestação de Jesus: “Quem ama a sua alma perde-a; e quem a odeia neste mundo guardá-la-á para a vida eterna” (Jo 12, 25).

O segredo para a compreensão deste dito está na palavrinha “mundo”. Não se trata, pois, de odiar a própria alma, o vigor originário da própria vida, em si mesma, mas de odiá-la tal como ela é “neste mundo”. Pois ela foi criada para ser segundo a imagem de Deus, para crescer na igualdade com Deus – segundo Deus e não contra Deus – na sua semelhança, isto é, na identidade com Ele, no amor e não para se perder nas aparências enganadoras e enganosas das realidades fugazes e passageiras construídas pelos homens – o mundo.

Mestre Eckhart comenta que há três coisas pelas quais a alma deve odiar a si mesma: primeiro, enquanto ela é “minha” alma, “pois, enquanto minha, ela não é de Deus”; segundo, enquanto ela não se tornou própria de Deus; terceiro, enquanto ela sabe (saboreia) a si mesma e não sabe (saboreia) Deus. É a alma colocada nesta condição que o homem deve odiar, para poder amá-la em si mesma, no seu vigor essencial, e em Deus, sua origem. Ele deve odiar a sua alma prisioneira, presa a ele mesmo e às coisas deste mundo. Assim, todas as coisas que o homem perde, odiando sua alma tal como ela é na sua condição de prisioneira deste mundo, ele a reencontra na sua pureza original, na condição originária de si mesma e em Deus.

  • Servir é seguir

Depois de ter usado o exemplo do grão de trigo, a fim de explicar a consumação de sua vida, vocação e missão, Jesus se volta para aqueles que o querem servir (diakonein) e seguir (akolouthein): “Quem quiser me servir, siga-me; e lá onde eu estiver, lá também estará o que me serve (diákonos). Se alguém me servir, o Pai o honrará” (Jo 12, 26).

Jesus toca aqui na mais expressiva compreensão que a Sagrada Escritura faz de alguém que entra na esfera da experiência de Deus e se dispõe a abraçá-la: tornar-se servo (diákonos) de Deus. Servir, ou ser servo, aqui, antes de alguém que desempenha tarefas a modo de escravo, empregado ou funcionário, indica o modo de ser de quem está no vigor, na alegria da graça do encontro, de ser eleito e amado. Serve como, por exemplo, a mãe serve ao filho recém-nascido ou como os esposos que se amam se servem um ao outro. Quem, a exemplo de Abraão, Nossa Senhora, São Francisco, etc. está nesta experiência sente a necessidade de servir e seguir. Por isso, Nossa Senhora, logo após a visita do anjo, exclama: “Eis aqui a serva do Senhor!” e São Francisco, após o encontro com o Crucificado: “Senhor que queres que eu faça?”. Servir significa, aqui, amar, no sentido da caridade ou da doação que não olha para o seu próprio interesse, mas que, esquecido de si, se volta para a necessidade e o interesse do outro. Assim, quem uma vez se encontrou ou foi encontrado por Jesus Cristo sente a necessidade de servi-Lo e de segui-Lo.

Para segui-Lo, porém, é preciso desprendimento: deixar para trás tudo, principalmente, a própria vontade para alcançar o único desejado: o Pai Celeste e sua vontade, seu bem-querer. Seguir Jesus, significa e implica então, em fazer a vontade e as coisas do Pai como Ele, Jesus, o fez. Isso significa, sem mais e nem menos, servir. Por isso, quem segue serve e quem serve segue. Neste caso seria um absurdo, um paradoxo desejar ou esperar ser servido.

O que une o servo ao seu senhor é, pois, a força da graça do enamoramento, da paixão e não qualquer outro vínculo externo a modo de um contrato de serviço ou função social. Por isso, Jesus segue dizendo: “Onde estou, ali comigo, deve estar o meu servo”. A morada de Cristo é a morada de seu discípulo, seu seguidor-servidor, seu “cavaleiro”, seu “vassalo”, seu ministro. Onde é a morada de Cristo, pergunta Mestre Eckhart? Sua morada está “no ser-um com seu Pai”. É nessa unidade que Ele está em casa, que Ele repousa como em sua origem. A recompensa de ser seguidor-servidor de Cristo consiste em morar nessa mesma morada do seu Mestre. Por isso, Filipe pedira ansiosamente a Jesus: “Mostra-nos teu Pai e isto nos basta” (Jo 14, 8).

  • A voz do céu: Eu o glorifiquei e o glorificarei ainda

Chegaos assim ao coração não apenas desta perícope, mas de todo o Evangelho: “Agora minha alma está perturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas é precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome” (Jo 12, 27-28a). Servir, resume, assim a vida, a missão de Jesus, na terra e de todos os seus e=seguidores: “Assim é que o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir (diakonésai) e dar sua alma (psyché: vida) em resgate pela multidão” (Mt 20, 28).

A glória do Pai é o tudo de Jesus, sua vida, seu coração, sua paixão. Mas, é também seu receio, sua angústia pela magnanimidade da Obra e de seu significado: a salvação dos homens. Em ambos os casos não pode haver o mínimo de qualquer falha. Daí sua perturbação, sua angústia.

 No Getsêmani esta perturbação chegará ao paroxismo. Sua angústia diante da morte – do abandono dos homens e, pasmemos (!), do Pai – chegará ao extremo. A segunda leitura de hoje, tirada da Carta aos Hebreus, recorda-o:

Nos dias da sua vida mortal, Cristo dirigiu preces e súplicas, com grandes clamores e lágrimas, Àquele que O podia livrar da morte e foi atendido por causa da sua piedade. Apesar de ser Filho, aprendeu a obediência no sofrimento e, tendo atingido a sua plenitude, tornou-Se para todos os que Lhe obedecem causa de salvação eterna (Hb 5, 7-9).

  • O julgamento do mundo

Finalmente, vem a primeira conclusão do discurso: “Agora é o julgamento deste mundo, agora o príncipe deste mundo será lançado fora” (Jo 12, 31).

É da lei da natureza que toda obra passe ou termine numa prova, num julgamento. Mas, na verdade, todo julgamento é sempre recíproco. Por isso, recomenda o próprio Senhor: “Não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1-5).

 Assim, enquanto o mundo (os homens que amam o mundo a ponto de se esquecerem de Deus ou de se voltarem contra Ele) pensa estar processando, julgando, condenando Jesus, na verdade ele – o mundo – é que está sendo julgado por Jesus e por sua morte na Cruz; é ele, o mundo, que está se condenando a si mesmo, mostrando-se indigno da luz, da verdade e da vida.  Aos olhos do mundo é Jesus Cristo que vai ser precipitado no abismo da rejeição, do abandono, da morte, da cruz. Mas, aos olhos de Jesus, na cruz, tudo que é hostil ao Pai e ao seu Reino – e, portanto, a Ele também – é que se precipita no nada. As potências hostis ao Reino do Pai Celeste – soberbas, invejas, prepotências, ódios, rancores, etc. – são, na cruz, aniquiladas, derrotadas. Mas, como se dá essa derrota?

Bonhoeffer contempla e descreve este mistério assim:

Ecce homo – mirai o homem julgado por Deus! O retrato do sofrimento e da dor. Assim aparece o reconciliador do mundo. A culpa da humanidade recaiu sobre ele e o condena à infâmia e à morte sob o juízo de Deus. Tão cara custa a Deus a reconciliação com o mundo. Só porque Deus executa o juízo sobre si mesmo é que pode intervir a paz entre ele e o mundo e entre homem e homem. Mas o mistério deste juízo, desta paixão e morte, é o amor de Deus pelo mundo e pelo homem. Aquilo que aconteceu a Cristo aconteceu a todos os homens. Só enquanto julgado por Deus o homem pode viver diante dele, só o homem crucificado está em paz com Deus. Na figura do Crucificado o homem reconhece e encontra a si mesmo. Assumida por Deus, julgada e reconciliada sobre a cruz, eis a realidade da humanidade (D. Bonhoeffer).

  • Então atrairei todos a mim

Vem, então a segunda frase da conclusão: “Quanto a mim, quando eu for elevado da terra, atrairei a mim todos os homens” (Jo 12, 32).

Quem fez uma bela interpretação deste dito foi Kierkegaard. Segundo ele, Cristo atrai o homem a partir do alto, isto é, do Pai. A partir do Pai ergue-o, torna-o reto, ereto, justo. E isso acontece a partir da consciência do pecado – do esquecimento de Deus em que ele jaz; do seu ser encurvado para o que é baixo. “É esta a ‘via’ pela qual ele atrai a si o homem arrependido”[1].

Acerca desta asserção ouçamos, ainda, o que diz nosso Doutor evangélico, Santo Antônio: “Cristo, que é a tua vida, está suspenso diante de ti para que tu te contemples na cruz como num espelho. Aí poderás conhecer quão mortais são tuas feridas, que nenhuma medicina tem poder de sarar, senão aquela que brota do sangue do Filho de Deus. Se olhares bem, poderás dar-te conta de quão grande são tua dignidade e teu valor… Em nenhum outro lugar o homem pode melhor dar-se conta do quanto ele vale do que olhando-se no espelho da Cruz”.

Conclusão

O sentido da vida é um tesouro escondido que só fará sua aparição completa no fim e apenas para aqueles que o desejam, o buscam, o seguem e por ele dão sua vida. Para nós esse tesouro é uma pessoa: Jesus e sua glória, como para Ele é o Pai e sua glória. Por isso e para isso, precisamos “caminhar com alegria na mesma caridade que O levou a entregar-se à morte e morte de cruz no seu amor pelo mundo” (Oração do Dia).  Eis o mistério da celebração deste 5º Domingo da Quaresma, princípio, também para vencer todas as violências que nos cercam e, principalmente, daquelas que nascem dentro de nossos corações.

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

[1] Este versículo do Evangelho segundo João é tema dos discursos do “magister Kierkegaard” – ou melhor, de Anti-Clímacus (um de seus pseudônimos), o qual por sua vez, confessa ter praticamente plagiado o magister – na terceira parte de sua obra intitulada “Exercícios de Cristianismo”.