SOLENIDADE DA NATIVIDADE DO SENHOR 2017
MISSA DA NOITE
Leituras: Is 9, 1-6; Sl 95 (96), 1-2a.2b-3.11-12.13 (R. Lc 2,11); Tt 2, 11-14; Lc 2,1-14 Tema-mensagem: E o Verbo se fez carne e habitou entre nós e nós vimos a sua glória, a glória de Filho único do Pai (João: Prólogo)
Sentimento: adoração jubilosa
Introdução
Depois de quatro semanas de preparação, chegamos hoje à culminância de toda as celebrações: o fim e o começo de toda a nossa história. As profecias se consumaram, as promessas se realizaram e as esperanças chegaram. Tudo isso porque um Menino nasceu, um filho nos foi dado. Eis o mistério desta noite (dia) santa (o): o Natal.
- O pregão messiânico de Isaias:
Nosso Natal vem de longe. Sendo mistério divino, tem raízes profundas e foi pressentido por muitos visionários de Deus, como o profeta Isaías. Em seu tempo, a situação em que se encontravam os israelitas, moradores da Galileia, povo do Norte, região da meia-noite, da escuridão da morte, a Galileia dos gentios não era nada satisfatória. Tendo de viver ou conviver com os pagãos, a grande maioria daquela porção do Povo de Deus, não era mais um “Povo de Deus”, mas um povo dos deuses pagãos; em vez de pertencer ao seu Deus, vivo e verdadeiro, vivia mais correndo atrás dos ídolos pagãos satisfazendo-se com seus cultos e costumes do que com a Lei que Ele lhes dera através de Moisés. Enfim era um povo perdido, confuso, dominado pelos estrangeiros, triste, abandonado e sem paz.
- Nasceu para nós um menino
No entanto, bem no meio de toda aquela degradação político-religiosa o olho divino de Isaias é transportado para um futuro bem diverso, e exclama: “o povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz começou a brilhar” (9, 1). E é com este pregão vindo das profundezas de nossa história que a liturgia da palavra, abre a solenidade desta noite (dia) santa.
O irromper desta luz transforma a tristeza em alegria, a opressão em liberdade, a morte em vida. Mas, tudo “porque um menino nasceu para nós…
Isaias descreve a futura felicidade, a bem-aventurança messiânica, com imagens próprias de uma libertação gloriosa e vitoriosa. O aspecto mais significativo e provocante, deste anúncio, porém, é contemplar a alegria, a felicidade salvífica – o Reino de Deus – que começa, justamente, na terra dos gentios, na região semi-pagã e por isso odiada pelos judeus. A estranheza deste sentimento de júbilo vai aparecer, depois, com muita intensidade quando Jesus começa sua ação messiânica: “Terra de Zabulon, terra de Neftali… Galileia dos pagãos¹, o povo que andava nas trevas viu uma grande luz e para os que moravam na região da morte, levantou-se uma luz” (Mt 4,15-16).
Assim, se o Povo de Deus que habitava a Galileia vivia numa situação de miséria e de desgraça, sob a contínua sombra da morte, atrelado aos efeitos da devastação e da guerra, agora, porém, num belo contraste, serão, justamente eles, os galileus, os primeiros a serem iluminados pelos raios luminosos deste Menino que nasceu para nós. Sinal evidente de um Reino universal que vai além das religões.
- Um filho nos foi dado
Note-se que o texto não diz apenas: “um menino nasceu para nós”. Faz questão de acentuar, também, que “um filho nos foi dado”. Pois não basta que o Ungido (Cristo) seja o Deus para nós. É preciso que ele seja o Deus conosco e, por fim, o Deus em nós, isto é, que, além de habitar entre nós, ele habite dentro de nós, em nossas mentes, que ele seja interiorizado em nós, seja gerado, gestado, formado em nós, tornando-se nosso fruto, nosso filho e, assim, nós nasçamos com ele em Deus, e nos tornemos filhos de Deus n’Ele e como Ele.
Mas, para ver o maravilhoso desta nova filiação divina é preciso ser limpo, simples, puro como aquele camponês do presépio de Gréccio, celebrado por São Francisco. “Pareceu-lhe ver deitado no presépio um bebê sem vida, que despertou quando o Santo chegou perto. E essa visão veio muito a propósito, porque o menino Jesus estava de fato esquecido em muitos corações, nos quais, por sua graça e por intermédio de São Francisco, ele ressuscitou e deixou a marca de sua lembrança” (1C 86,7-8).
Este Menino será o verdadeiro ungido de Deus, o Cristo, o Messias prometido para inaugurar o Reino de seu Pai. Um Ungido especial com uma missão especial. Por isso, também, seu nome é especial e grande, ou melhor, um nome com quatro nomes:
– “Conselheiro admirável” – porque ele rege com espírito do conselho (Is 11, 2), pois como ninguém conhece os desígnios divinos escondidos no coração de cada pessoa;
– “Deus forte” – porque ele rege com o espírito da fortaleza (Is 11, 2), pois age com valentia, como um herói que traz ajuda na libertação;
– “Pai eterno” – porque é para seu povo como um pai “da eternidade”, pois, todo aquele que com ele se encontra e a ele adere de “seu interior jorrarão rios de água viva” (Jo 7,38);
“Príncipe da Paz” – porque ele é o princípio, a fonte de onde se origina a Paz. Por isso, também ele é a paz em pessoa (Cf. Jz 6, 24; Mq 5,4).
Enfim, ele é o Emanuel – Deus conosco (Is 7, 14). O advento do Emanuel, a união pessoal do Filho de Deus com a nossa humanidade, transforma a nossa noite cheia de medos e angústias em uma “noite feliz”, uma “noite de paz”, “uma noite de luz”, “uma noite de alegria”. Como disse o poeta Rilke na “Vida de Maria”: “Mas tu (hás de ver): Ele alegra”.
Não há, pois como não ver aqui neste vaticínio de Isaias um aceno messiânico, talvez o mais claro de todo o antigo Testamento, e que se consuma com toda a clareza e poder na ação messiânica de Jesus.
Talvez seja por isso, que a Igreja em seus encontros, e nos momentos mais significativos da sua liturgia, como que para recordar sempre e de novo esta realidade a mais fundamental de toda a Boa Nova, inicia exclamando: “O Senhor esteja convosco!”. Como então, não hão de se levantarem para o alto os corações dos fiéis diante de tão auspicioso anúncio, como no prefácio da missa, por exemplo?!
- A graça de Deus
A segunda leitura da missa de hoje é tirada da Carta de Paulo a um dos seus mais fiéis companheiros e colaboradores na obra da evangelização. Paulo trata de orientar seu “filho na fé”, Tito, acerca de sua missão junto às comunidades por ele conduzidas. Na perícope de hoje, começa colocando com clareza o princípio de toda a conduta dos fiéis numa comunidade inserida num meio pagão: “ a graça de Deus se manifestou trazendo a salvação para todos os homens”.
Ora, o que é essa graça senão a doçura da presença do amor inaudito de Deus que se abrevia, se apequena a ponto de caber num coxinho de estrebaria tão somente para assim poder ser recebido e amado por nós? É esse amor que anima toda a renúncia à impiedade e aos desejos deste mundo e a vivência da temperança, da justiça e da piedade (Cf. vs 12 e 13).
Longe de nós, portanto, ver nesta exortação uma possível intenção de estabelecer uma igreja ou comunidade de puros ou melhores que os outros. Trata-se antes de mostrar a todos, principalmente aos não crentes, que ser cristão é ser humano no verdadeiro e pleno sentido de nossa natureza e que, por conseguinte, não há mais nada a temer ou que possam contestar ou repudiar em nossa conduta podendo, assim, também eles se associar confiantemente à nossa fé. Quando o criador se une à sua criatura, esta se torna perfeita. Por isso, ser cristão em nada diminui a natureza humana. Pelo contrário só a engrandece porque passa a viver em profunda comunhão de vida com o próprio criador, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que “se entrega todo para nos resgatar de toda a maldade…” (vs. 14). Enfim, a exortação de Paulo corresponde à exigência da nobreza a que fomos elevados, e nobreza se responde com nobreza.
3.Hoje nasceu o salvador do mundo e com ele a paz a alegria
Quem hoje nos conduz para o mistério da Natividade do Senhor Jesus é o evangelista Lucas, o único a descrever este mistério como fato dentro da história humana. A perícope se desenrola dentro de uma dinâmica muito clara, bela e expressiva. Depois de descrever um momento passageiro da história do mundo – o recenseamento romano – com suas expectativas, anuncia o acontecimento máximo, definitivo e eterno de toda a história e para a grandeza e a glória de toda a humanidade. Termina expondo sua repercussão na terra e no céu.
3.1. Aconteceu naqueles dias
“Aconteceu naqueles dias…”. Assim começa o Evangelho da Natividade de Jesus. Que dias eram aqueles? Os poderosos deste mundo estavam querendo saber e conhecer a grandeza e a glória de seu império. Por isso e para isso começaram a contabilizar seus súditos, os homens. Quem comandava este poder era César Augusto, comandante supremo do Império romano, que na época equivalia a um Império universal.
A intenção do evangelista, embora oculta, é muito clara e humorista. Enquanto o império – oposto de reino – deste mundo se dá nas aparências – parece, mas não é – o reino – coisa real – de Deus se dá no oculto. Seu reino (e não o Império Romano) é universal. Ele é o verdadeiro “Augusto”, isto é, quem faz, com sua autoridade, aumentar a vida, pois o termo “augusto” tem em sua raiz o verbo “augere” que significa “fazer crescer, florescer a vida”. O recenseamento do Império é uma ilusão de dominação e subjugação sobre os povos. Os cálculos do poder são vãos. Dão a impressão aos homens de controle do controle de tudo. Mas a verdadeira autoridade é aquela que se revela em Jesus. É uma autoridade sem dominação. Autoridade suave, dócil, terna, pura, pacífica, e inocente como uma criança deitada em seu berço.
Por isso, o verdadeiro censo é aquele pelo qual os homens são inscritos no livro da vida eterna. Jesus, ao aparecer em carne mortal faz inscrever na eternidade todos os cidadãos da cidade celeste, a cidade de Deus. Como ele diz no mesmo evangelho de Lucas: “alegrai-vos, antes, porque os vossos nomes estão escritos nos céus” (Lc 10, 20). Os cidadãos deste Reino universal vêm de todas as tribos, línguas, povos e nações.
O salmo de hoje celebra este acontecimento: “Anunciai dia a dia a sua salvação, publicai entre as nações a sua glória, em todos os povos as suas maravilhas”. Uma celebração universal, cósmica:
Alegrem-se os céus, exulte a terra,
ressoe o mar e tudo o que ele contém,
exultem os campos e quanto neles existe…
3.2. Maria, completando os dias de sua gravidez, deu à luz seu primogênito
Como membro ou cidadão deste mundo, Jesus nasce sob o domínio dos poderosos que o governam e conduzem, mas como descendente da promessa de Deus feita aos seus servos nos tempos passados, principalmente a Davi, vem ao mundo, não em Roma nem mesmo em Jerusalém, mas em Belém. Ao nascer abandonado, só, distante das grandes cidades e da história do mundo, numa estrebaria e numa manjedoura diz tudo. É assim que ele reinará: fazendo-se infante (aquele que não fala), “feno”, isto é, comida para todos que o quiserem, inclusive para os animais e demais criaturas. Na última Ceia dirá: “Isto é meu corpo, tomai-o e comei. Isto é meu sangue, tomai e bebei!”
Maria deu à luz um menino porque engravidara, concebera a Palavra eterna do Pai em seu coração e em sua mente, primeiramente pela comunhão no sentimento de toda a história sagrada de seu povo e depois misteriosa e milagrosamente em seu seio, de modo carnal, pelo poder do Espírito Divino. “Assim, a Palavra eterna se fez pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura. Fez-se criança, para que a Palavra pudesse ser compreendida e apanhada por nós. Desde então a Palavra já não é apenas audível, não possui somente uma voz; agora a Palavra tem um rosto, que por isso mesmo, podemos ver: Jesus de Nazaré” (VD 12). O Maior, o Máximo, vem como Menor, como Mínimo, nascendo numa pequenina cidade, que quase nada conta, que mal aparece no cenário da história visível dos homens. No menino de Belém se manifesta a humanidade, quer dizer, a humildade de Deus, que rege, servindo a tudo e a todos. “Belém” quer dizer “casa do pão”. Ele dirá de si mesmo: “Eu sou o pão da vida” (Jo 6, 35). E: “Eu sou o pão que desce do céu” (Jo 6, 41).
Maria “deu à luz o seu filho primogênito”. O primogênito de Maria (Lc 2, 7) é também o primogênito de todas as criaturas (Cl 1, 15), isto é, o sentido e o fundamento do ser de toda a criação. Ele é, como dizia o teólogo franciscano João Duns Scotus, o “summum opus Dei” (a suma obra de Deus). Ele é o “primogênito de muitos irmãos” (Rm 8,29). À sua imagem os homens foram criados. São Francisco, numa de suas admoestações diz: “Atende, ó homem, a que excelência te pôs o Senhor Deus, porque Ele te criou e te formou à imagem do seu dileto Filho, segundo o corpo, e à sua semelhança, segundo o espírito…” (Adm V).
Toda a criatura, sim, cada uma, na sua irrepetível individualidade, é chamada a participar desta nova criação, muito mais sublime que a primeira, a ponto de Santo Ambrósio dizer: “Senhor, mais te devo por ter sido redimido em virtude das injúrias que sofreste, do que por ter sido criado entre tuas obras. De nada me aproveitaria o ter nascido, se, ao mesmo tempo, não tivesse sido redimido”.
Maria “envolveu-o em faixas e o deitou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na sala dos hóspedes”. O seu Filho não vem estremecendo céu, agitando a terra, lançando raios como os poderosos deste mudo. Veio, antes, em fraqueza e ternura. É que vem não para nos condenar e fazer perder. Vem para nos salvar e nos fazer renascer.
Dizia Mestre Eckhart que, se um rei se casa com uma plebeia, toda a sua família se torna nobre. Nós, isto é, toda a família humana, fomos enobrecidos e enriquecidos pela pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo. São Francisco ficou enternecido e apaixonado pelo mistério da Pobreza de nosso Deus. O livreto intitulado “Sacrum Commercium” contempla a dignidade dessa Pobreza. A união pessoal do Filho de Deus com a nossa natureza humana é recordada, então, como núpcias de Deus conosco (SC n. 6). A Pobreza é exaltada e homenageada como “esposa fidelíssima de Cristo”, que esteve com ele, do ventre da Virgem Mãe e do Presépio até a Cruz. A “Senhora Pobreza” aparece, então, como o Amor-Misericórdia, que foi “revelado em pessoa no modo de ser de Jesus Cristo, pobre e humilde” (Fontes Franciscanas, p. 869). “Ela é benigna, silenciosa e imensa, como o Céu e a Terra; ela abraça cuidadosa e benignamente a caminhada da passagem íngreme e estreita, cheia de perigos e aventuras, do Encontro de Amor da nossa finitude mortal com o Amor que nos amou primeiro. Amor infinito que se faz finito, recolhido, ocultando-se na gruta da Senhora Pobreza, como o Natal de um Novo Céu e Nova Terra” (Fontes Franciscanas, 869-870).
Natal é a solenidade da Natividade do Senhor Jesus Cristo. Natividade é o vigor do nativo. Nativo é o que tem a ver com o natural, com o nascimento. Isto nos reconduz à originariedade da vida que se mostra no recém-nascido, na criança. Por isso, Francisco se enternecia com a natividade do “Menino Pobrezinho”. A pobreza, a simplicidade, a humildade do mistério da Mãe e do Menino Pobrezinho evocam algo de essencial, que parece estar adormecido, normalmente, em nossos corações: a simplicidade da grandeza e a grandeza da simplicidade, tão bem expresso nesta reflexão:
Não é simples a grandeza? Discreta, recolhida no fundo do coração de todas as coisas como a vigência que, sendo pisada, usada e abusada por todos, tudo sustenta, tudo acolhe, tudo suporta, i. é, sub-porta, carrega, colocando-se debaixo, para que a vida, a ternura e a suavidade do ser seja tudo em todas as coisas?[1] Essa regência da suavidade vigorosa de ser, a ternura do amor não está contida, resguardada, protegida nas dobras dos panos pobres que vestem o Menino e a Virgem Mãe, cujo corpo da disponibilidade sem dobras é o regaço que pode receber o poder da onipotência e infinitude de um Deus? De um Deus, cuja força não pode ser a não ser que se doe, a ponto de se tornar um de nós e morrer crucificado, para testemunhar com o seu corpo e sangue a humilde sinceridade, a loucura da sua simpatia e solidariedade conosco?[2]
- Naquela mesma região havia pastores
Na terceira cena deste evento inaudito, entram os pastores, ou melhor eles são introduzidos, pois um anjo apareceu-lhes com esta auspiciosa notícia: “Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria: ‘Nasceu para vós um Salvador que é o Cristo Nosso Senhor!’”
Ah, esses pastores, gentinha de nada, que à noite dizem vigiar suas ovelhas, mas que andam por aqui e por ali surripiando ovelhas e cabritos de outros pastores, sempre intrigados uns com os outros. Hoje, porém a figura do pastor do presépio entrou mais para o terreno do romantismo; virou peça de enfeite, para emocionar crianças e adultos.
Mas, a realidade é bem outra. É como a encenada no auto-de-natal escrito pelo poeta João Cabral de Melo Neto, intitulado “Morte e Vida Severina”. Nele, Severino sai do sertão afligido pela seca, passa pelo agreste dos canaviais e dos senhores de engenho, e chega, pelo rio Capiberibe, até a cidade de Recife, a capital, atormentada pela miséria e pela violência. Por toda a parte em seu caminho Severino só vai encontrando a morte. E, junto ao cemitério do Recife, ele entende que toda a sua peregrinação era como que uma antecipação de sua procissão fúnebre. Sem esperança na vida, ele pensa, então, em dar cabo dela, jogando-se nas águas do rio Capiberibe, junto à sua foz. Mas, enquanto hesitava, ele se encontra com um mestre carpinteiro de nome José. Conversando com o carpinteiro sobre sua desesperança, ele interpela-o, questionando se a vida valia ou não à pena de ser vivida. O carpinteiro não responde. A resposta vem de um acontecimento: o nascimento de uma criança. Nasceu o filho do carpinteiro. E a chegada desta notícia enche de alegria o pai e a mãe e os familiares e os vizinhos e todos vêm oferecer dons desde a sua pobreza para honrar o nascimento do menino pobrezinho e para se alegrar com seus pais. Todos sabem que era mais um Severino que vinha ao mundo para viver e sofrer, em vida, a morte severina dos pobres. Mas é preciso se alegrar com o nascimento. Um raio de luz, afinal, brilha na escuridão. Sempre quando nasce uma criança um pouco de suavidade e ternura abranda a dureza e a severidade da vida dos pobres na terra dos homens…. Sim, toda a vida, na sua fraqueza e ternura, na sua singeleza e inocência, precisa ser celebrada, com alegria. E essa alegria singela deve poder sobrepujar toda a desesperança e todo o desespero…
Os “severinos” que vêm celebrar com Maria e José o nascimento do Menino são os pastores, os pobres, que, na noite do mundo, vigiam. Diante da fraqueza e da ternura do amor humilde de nosso Deus todos somos rudes pastores. Na “Vida de Maria”, o poeta Rilke adensa o mistério da Natividade do Senhor Jesus ao apresentar a “anunciação do alto aos pastores”. É o Menino – o “Emanuel” mesmo – que fala pelo anúncio:
Homens, olhai para o alto, homens que em torno
Do fogo noturno conheceis o céu ilimitado,
Contempladores de estrelas, olhai!
Vede, a nova estrela que ascende eu sou,
Ardendo em luz; meu fulgor é tão tremendo
Que não me basta o profundo firmamento.
Deixai-me penetrar o vosso ser:
Oh, que olhares e corações escuros;
Destinos noturnos vos impelem. Pastores,
Em cada um de vós sinto-me só.
Mas de vossos corações eu faço um reino.
O nascimento de Jesus une céu e terra, mortais (homens) e imortais (anjos), o divino e o humano. Na sua unidade e simplicidade tudo se recolhe, silenciosamente. Tudo o que estava dividido, é conduzido à unidade. Tudo que estava dilacerado se compõe na integridade. Tudo que estava em conflito é pacificado.
4.E de repente juntou-se ao anjo uma multidão da corte celeste e cantavam
Finalmente, a última cena: “E de repente, juntou-se ao anjo uma multidão da corte celeste. Cantavam louvores a Deus, dizendo: “Glória a Deus no mais alto dos céus…”. É uma única festa, a mesma no céu e na terra, anjos unidos aos pastores.
Os anjos sempre acompanharam e ajudaram seu Senhor nos preparativos da encarnação de seu Filho, estimada como um casamento. Agora cessaram os preparativos porque o “Sacrum Commercium”! o casamento chegou. É hora de todos se juntarem e cantar louvores a Deus dizendo: “Glória a Deus nos altos céus e paz na terra aos homens por ele amados”.
É o “gran finale” da segunda criação iniciada logo após o pecado de Adão e Eva.
São Gregório Magno diz: “Também louvam ao Senhor porque põem seu canto em harmonia com a nossa redenção. Nos veem recebidos em sua graça e se congratulam de que se plenifique o seu número”. Agora respeitam como companheiros os homens outrora enfermos e abatidos. Orígenes faz uma comparação. Quando médicos que em vão trabalharam pela saúde dos enfermos encontram um médico sábio e potente para curar os que eles não conseguiram tornar saudáveis, em vez de ficarem invejosos, se alegram com tal médico e se congratulam com ele e com os enfermos. Assim, os anjos se alegram com o nosso Salvador, e com a saúde que será comunicada a todos que se deixarem tratar por ele. Com a salvação, nos é concedida também a paz. Jesus Cristo, com efeito, do que era dividido, fez uma unidade” (Ef 2, 12-14). Uniu o divino e o humano, céus e terra, os mortais e os imortais, o santo e o pecador. Por ele, o céu baixou à terra e a terra foi elevada ao céu. E todo o universo foi subsumido no mistério da encarnação. Na nova humanidade, que é engendrada hoje, o Verbo prolonga sem fim o ato de seu nascimento e, pela força de sua imersão no seio do mundo […] toda matéria agora é encarnada… (Teilhard de Chardin).
Conclusão
O Papa Francisco propõe que tomemos São Francisco como modelo para reconstruir nosso humano. Ora, por que, então, não começar pela renovação das celebrações do nosso Natal que, para ele, era a “Festa das festas”? Diz seu biógrafo que ele “gostava tanto de lembrar a humildade da encarnação de Jesus e de sua paixão que não queria pensar em outra coisa” (1C 84). Foi também movido por este sentimento que inventou o primeiro Presépio vivo, conhecido, também como o “Presépio de Gréccio”. E deu o motivo: “Quero lembrar o menino que nasceu em Belém, os apertos que passou, como foi posto num presépio, e contemplar com os próprios olhos como ficou em cima da palha, entre o boi e o burro” (1C 84). E acrescenta o biógrafo: “ Muitas vezes, quando queria nomear Cristo Jesus, chamava-o também com muito amor de ‘Menino de Belém’, e pronunciava a palavra ‘Belém’ como o balido de uma ovelha, enchendo a boca com a voz e mais ainda com a doce afeição. Também estalava a língua quando falava ‘Menino de Belém’ ou ‘Jesus’, saboreando a doçura dessas palavras” (1C 86).
Só a coragem da loucura dos apaixonados, que brota da veia mais profunda de suas entranhas, pode fazer isso sem cair no ridículo da pieguice. Por isso, nos exorta um companheiro dele: “Precisamos recordar com todo respeito e admiração, o que fez no dia de Natal, no povoado de Gréccio, três anos antes de sua gloriosa morte” (1C 84,4-5). Em todo o caso, aí está o princípio da reconstrução de todo humano e de toda a criação: a humanidade de Jesus Cristo que precisa ser beijada e adorada.
Em louvor do Menino de Belém!
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm
[1] 1Cor 13,1-13.
[2] HH. Em Comentando I Fioretti, p. 70.