Quarto domingo do Advento

QUARTO DOMINGO DO ADVENTO

24/11/2017 – Ano B

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: 2Sam 7,1-5.8b-12.14a.16; Sl 88 (89); Rm 16,25-27; Lc 1,26-38

Tema-mensagem: Pelo Sim de Maria, consumam-se todos os anúncios do Messias.

Sentimento: gratidão jubilosa

Anunciação (Fra Angelico: 1425/1428)

Introdução:

Através da assim chamada História da Salvação, o anúncio do Messias veio se dando aos poucos e se mostrando cada vez mais claramente e mais próximo dos homens. Hoje, véspera do Natal, através do anúncio do anjo e do sim de Maria celebramos o fim, a consumação de todo este processo. Natal será o nascimento, mas hoje é a concepção do Salvador no seio da Virgem Maria, a entrada de Deus no mundo, na história e na humanidade.

 

 

 

  1. O desejo de construir uma habitação para Deus

Quem, neste domingo, nos introduz nesse mistério é um trecho do Segundo Livro de Samuel onde se registra o importante momento na história do Antigo Testamento: a união das tribos do Norte (Israel) à tribo do Sul (Judá), em torno de um único rei (Davi) e de uma capital comum – Jerusalém – (fim do século XI e início do século X a. C.). Depois que a cidade de Jerusalém fora conquistada por Davi e seus guerreiros os jebuseus, a “arca da aliança” foi transportada para lá. Davi disse, então a Samuel: “Vê, eu resido num palácio de cedro, e a arca de Deus está alojada numa tenda”.

Aparentemente, uma boa iniciativa. O profeta Natã, porém, inspirado por Deus, se opõe a este projeto. Como Davi daria uma casa, isto é, uma morada estável ao Deus que caminhara como peregrino com Israel até então na sua saga de libertação?! O que estava acontecendo era o contrário: Deus mesmo é quem daria a Davi uma casa, isto é, uma dinastia estável. Trata-se da aliança de Iahweh com Davi. Mais uma vez Deus se compromete com a humanidade através de sua aliança de amor com os hebreus, assim como o fizera no passado com Noé (Gn 9), com Abraão (Gn 17) e com Moisés e o Povo no deserto (Ex 19-24). Mas, talvez, se possa, também, ver na resposta de Deus um leve sorriso de brincadeira, como que dizendo: “Que pretensão é essa a tua, hein, Davi, simples criatura minha, de querer construir uma casa para mim que sou a Casa, o cuidado de todos os povos e de todas as criaturas? Como poderás tu me assentar num templo, por mais sagrado e amplo que seja, se nem o universo inteiro é capaz de me conter? Como posso eu ficar preso num pequeno lugar se meu viver é ser peregrino e estar no meio de todas as pessoas, povos e nações do mundo inteiro?”

Além do mais, esta aliança davídica não tem sentido em si. Ela aponta para uma Nova Aliança, aquela que seria eterna e que seria selada no sangue do Cristo, o “Filho de Davi”. Assim, a profecia de Natã e a promessa que ela contém serviu como arrancada de uma nova esperança que vai perpassar o Antigo Testamento, a saber, a esperança do Messias (Cristo = Ungido), em que o Reino de Deus se consumaria, num reinado de justiça e de paz para todos os povos e todos os tempos.

 

 

  1. A Igreja canta a Deus sua eterna aliança com os homens

Os cristãos sempre viram e veem a aliança davídica concretizar-se em Jesus de Nazaré. Nele, incomparavelmente, são realizadas as palavras da profecia de Natã. Jesus é o “descendente”, o “Filho de Davi”, em que o reinado de Deus se consuma na história de maneira consolidada. Ele é a habitação definitiva de Deus com os homens. Nele se cumprem e se plenificam as palavras de Deus: “Serei para ele um pai e ele será para mim um filho” – palavras essas que ecoam no salmo da missa de hoje (88/89): “Ele Me invocará: ‘Vós sois meu Pai, meu Deus, meu Salvador’. Assegurar-lhe-ei para sempre o meu favor, a minha aliança com ele será irrevogável”. A aliança de Deus com Davi era, na verdade, apenas a prefiguração da aliança de Deus com Jesus de Nazaré e através desta, com toda a humanidade, envolvendo todas as tribos e línguas, todos os povos e nações da terra.

 

  1. O mistério desta aliança revelado em plenitude

Quem sempre exultou de alegria e gratidão diante da revelação deste mistério é São Paulo, como se pode ver no epílogo da Carta aos Romanos, escolhido para a segunda leitura de hoje: “Irmãos: Glória seja dada àquele que tem o poder de vos confirmar na fidelidade ao meu evangelho e à pregação de Jesus Cristo, de acordo com a revelação do mistério mantido em sigilo desde toda a eternidade”. Mistério este manifestado na encarnação do Filho de Deus como filho do homem, e, assim, dado a conhecer a todos os povos, sim, a todos os gentios, para que todos os homens fossem conduzidos à obediência (pertença na escuta) da fé.

Na primeira carta a Timóteo este Mistério é celebrado como o “mistério da piedade” ((tò tes eusebeías mystérion). Ele é chamado de “grande” e celebrado a modo de hino: “Ele foi manifestado na carne, / justificado no Espírito, / contemplado pelos anjos, proclamado entre os gentios, / crido no cosmo, / arrebatado na glória” (1 Tm 3, 16).

 

  1. A consumação de todos os anúncios

O evangelho escolhido para o encerramento da Advento – última preparação para o Natal – é tirado do evangelista Lucas, mais precisamente, do “Evangelho da Infância”, usualmente conhecido como “Evangelho da Anunciação”. O termo já diz que estamos diante de um grande anúncio: “anunciação”. Na verdade, estamos diante de uma confissão (homologese) e uma celebração do cumprimento, o resumo de todas as profecias do antigo testamento: o advento de Jesus, seu nascimento e sua irrupção na história. Tudo envolvido na atmosfera do maravilhoso, atraente (sonhos, aparições, manifestações angélicas). Pela beleza literária, simplicidade e profundidade de sua teologia esse evangelho é fundamental, mais do que todos os anúncios proféticos, pois aqui está não apenas o anúncio, mas também a efetivação do que se anuncia: a origem (a gênesis) da nova criação, da nova humanidade e da nova história. Este evangelho é importante também para toda a história subsequente, pois é o momento decisivo do princípio, da encarnação, da entrada de Cristo na realidade de nossa humanidade.

Acompanhemos seu desenrolar.

 

  • No sexto mês – a origem de João Batista e de Jesus

“No sexto mês…”. O texto litúrgico de hoje começa proclamando: “naquele tempo”, mas no original está “no sexto mês”. Não parece difícil perceber uma intenção bastante clara e importante: ao falar em “sexto mês”, Lucas tem em mente traçar um paralelo entre João Batista e Jesus. Por isso começa falando do sexto mês da gravidez da mãe de João Batista.

O anúncio da concepção do Batista se dá em Jerusalém, centro político, econômico e religioso de todo o povo de Israel. Já o de Jesus se dá longe, fora, num povoado desconhecido: “Nazaré”, do qual nada de bom se pode esperar. Mais tarde, enquanto os maiorais de Jerusalém rejeitam a mensagem e a pessoa de Jesus, os povoados pobres, e humildes da Galileia, acorrem atrás dele para admirar seus milagres e gestos e, acima de tudo para ouvir e acolher a boa nova do perdão e da paz.

Enquanto que, para o primeiro, a infância e a juventude são vividas nos arredores do templo, junto com os sacerdotes, especialmente seu pai Zacarias, para o segundo, são passadas em Nazaré, junto com sua gente sofrida, humilde, marginalizada e rejeitada pelos grandes. 

O anúncio do primeiro acontece no templo, no “santuário do Senhor”, durante uma solene celebração litúrgica e a um dos anciãos mais veneráveis da hierarquia sacerdotal, Zacarias. O de Jesus, porém, é feito a uma mocinha, de nenhum significado, no cotidiano anônimo de Nazaré, na sua hora mais silenciosa.

Além do mais, se o anúncio de João Batista é grande, por ser extraordinário, ele ainda está dentro da possibilidade da natureza humana, o de Jesus é coisa de outro mundo, absolutamente novo e inaudito, inteiramente impossível a partir dos homens e assim anunciado pelo anjo: “O Espírito virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”.

Ora, o que pensar de todos esses paralelismos senão a indicação do rumo, o caminho da nova história que se está inaugurando com o advento do Senhor e assim assinalado por São Francisco: “Sendo rico, acima de todas as coisas, Ele mesmo, juntamente com a beatíssima Virgem Maria, sua Mãe, quis no mundo escolher a pobreza” (2CF 5).

 

  • O anjo Gabriel foi enviado a uma virgem de nome Maria

O anjo Gabriel foi enviado a uma virgem desposada (núbil prometida) de nome Miriâm (Maria) com um homem de nome José, da casa de Davi. O anjo, porém, não vem em forma de sonho, mas de visão solene. Enquanto o sonho sempre nos transporta para o mundo da imagem ou fantasia, nos distanciando da realidade, a visão sempre nos põe em contato direto e imediato com o real.

Primeiramente, em Maria, mãe e expressão da nova humanidade, que se mantém aberta ao mistério de Deus, se concretiza não só a esperança de Israel, mas também de todos quantos lutam e sofrem pela sua verdade e pelo seu futuro. Segundo Beda, o diálogo do anjo, enviado por Deus, com Maria é o início de nossa salvação, assim como o diálogo da serpente, enviada pelo Inimigo, fora o início de nossa perdição. Maria é, pois, a Nova Eva, a nova Mãe dos viventes, a saber, daqueles que são vivificados pelo Espírito Santo. O nome Maria[1] em hebraico, Miriâm, significa “Senhora Soberana[2]. Ela é a esposa prometida de um homem da casa de Davi, chamado Iosseph (José), que significa “Ele acrescentará”. Este foi dado a ela de acréscimo, como um custódio, um guardador e um cuidador. O casamento com ele daria a ela a proteção necessária para o mistério que ela trazia velado consigo mesma. E o seu filho, graças a José, seria da estirpe real de Davi. Nele, a profecia de Natã poder-se-ia realizar.

 

  • Enviado por Deus

O terceiro personagem deste evento, na verdade o primeiro, é Deus. É Ele que age no fundo de tudo e de todos. Deus, não como uma entidade suprema, um grande arquiteto, distante e impassível, “atemporal”, sem nada a ver com a história dos homens, mas um Alguém forte que comunga, se alia e se compromete de novo com a história de Israel e que agora age de modo decisivo e definitivo através da graça do “Sim” de Maria. É um Deus que fala e se faz presente através do seu anjo, que opera de modo criativo através do seu espírito (“o Espírito virá sobre ti”) e que se “atualiza” no Filho que nascerá de Maria.

 

  • Alegra-te cheia de graça

A primeira palavra que soa da boca do anjo, na verdade, de Deus, é “Alegra-te”. O texto grego traz: “Chaire, kecharitoméne, ho kyrios metà soû” (Alegra-te, agraciada, o Senhor está contigo). Na interpretação de Mestre Eckhart, a saudação latina “Ave!”, significa “âne wê”, isto é, sem dor, sem ai[3]. Nesta etimologia incorreta, porém, ele alcança o verdadeiro, isto é, o essencial. A saudação “Ave!” fala da plena alegria e do pleno vigor da vida (saúde). Aquele que é agraciado por Deus vive a vida sem “ai”, isto é, sem lamúria, na plena cordialidade de ser. Mestre Eckhart dizia que quando a alma humana se desprende do mundo, do que é criatural, vive a vida sem ai: “nela não há sofrimento, nem pena. Para ela, até mesmo a desventura torna-se alegria”[4].

Quem, 1.300 anos depois, se encanta e canta esta saúde em Maria, é São Francisco: “

“Ave, ó Senhora, santa Rainha,

Santa Mãe de Deus, Maria,

que és virgem feita Igreja…

Ave, ó palácio do Senhor,

Ave, ó tabernáculo do Senhor,

Ave, ó casa do Senhor,

Ave, ó vestimenta do senhor,

Ave, ó serva do Senhor,

Ave, ó mãe do Senhor” (SVM)  

Na saudação do anjo, Maria é evocada como “cheia de graça”. O que nela acontecerá é obra da graça. A obra da graça é maior do que se Deus criasse um mundo novo, diz Agostinho, recordado por Eckhart[5]. O atuar da graça é seu ser. É simples. Mas, em que consiste este ser? “A graça, é isto: uma interioridade, uma inerência e uma união com Deus”[6]. “Cheia de graça” significa, então, o mesmo que: “Deus é contigo!”. Este ser de Deus com a alma humana é que lhe doa paz, alegria, vigor, saúde plena. Mestre Eckhart lembrava que toda a alma humana é chamada, como Maria, a deixar acontecer em si mesma o nascimento de Deus, e que isso não acontece sem a graça. Ele entendia o “Deus é contigo”, como o verdadeiro nascimento de Deus em Maria e, consequentemente, na alma de todo aquele que crer. E acrescentava que ninguém deve pensar que isso seja impossível quando é Deus que opera. Por isso, concluía dizendo que devemos desejar ardentemente que, a exemplo de Maria, Ele queira nascer em nós e que Ele mesmo nos ajude a termos esse desejo[7]. Dizia também que, ao invés de reclamarmos de não ter a graça, precisamos deseja-la. E, se não temos o desejo, precisamos desejar o nosso próprio desejo.

“Ave, cheia de graça”: a plenitude da graça, em Maria, era tanta, que não se conteve nela mesma, mas transbordou sobre todo o universo. Assim diz São Jerônimo: verdadeiramente é cheia de graça aquela pela qual toda criatura foi inundada com a chuva abundante do Espírito Santo. “O Senhor está contigo”: junto com a interpelação e a vocação lhe é dada a garantia da benevolência e do favor de Deus[8]. Santo Agostinho emenda: “Mais que contigo, Ele está em teu coração, se forma em teu seio, enche o teu espírito, enche o teu ventre”. A bendição de Maria é o início da bendição dos homens e das mulheres no seu Filho, Jesus.

Não será por isso, que todos os dias, principalmente ao entardecer, a tradição cristã nos leva a exclamar ou cantar jubilosos: “Ave Maria…!?”

 

  • Maria ficou perturbada

Ao escutar esta saudação, Maria fica perturbada, e se põe a refletir sobre seu sentido. Ela parece entrever uma interpelação e uma vocação singular. Ela procura penetrar o mistério desta revelação inesperada. Os pais da Igreja ressaltam como Maria não se comporta de modo ligeiro, leviano, como um ser humano que não tem sentido para o pudor do mistério, nem de modo resistente, incrédulo, como o sacerdote Zacarias, pai de João Batista. Diante de sua perturbação, o anjo a chama pelo nome, mostrando-lhe, assim, familiaridade: “Não temas, Maria. Sim, tu encontraste agraciamento junto de Deus”. São João Crisóstomo comenta: quem encontra graça diante de Deus nada tem a temer. E recorda que encontra graça diante de Deus aquele homem que é humilde.

 

  • Eis que conceberás e darás à luz um filho

E o mensageiro segue dizendo: “Eis que conceberás no ventre e darás à luz um filho…”. Ela já tinha concebido o Messias, o Verbo de Deus, no seu espírito, no seu desejo. Agora o conceberia no corpo, no seu ventre. Ela já o gerava na alma; agora o geraria no seu útero. Ela já estava disposta a dá-lo à luz espiritualmente; agora lhe cabia a incumbência de dá-lo à luz corporalmente. Ela, que estava sempre de prontidão na espera do Deus que vem, agora o traria em seu corpo e o mostraria ao mundo unido à carne de nossa humanidade. Nela, o Filho de Deus tomaria carne, a carne de nosso ser. Santo Ambrósio recordava aos cristãos de sua comunidade (em Milão) que era preciso, espiritualmente, dar à luz a Cristo. Isto é: era preciso não o abortar espiritualmente. Não todos, dizia ele, são como Maria, que quando concebem o Verbo a partir do Espírito Santo, o dão à luz. Há aqueles que abortam o Verbo antes de o dar à luz e há aqueles que têm a Cristo em seu interior, porém, sem que ainda o tenham deixado tomar forma em si mesmos. Já São Francisco costumava exclamar para seus companheiros e seguidores seculares: “Somos mães, quando O levamos no coração e em nosso corpo, por amor divino e de consciência pura e sincera; O damos à luz pela santa operação que deve brilhar, em exemplo, para os outros… Oh, quão santo e dileto, benfazejo e humilde, pacífico e doce, amável e sobre todas as coisas desejável, ter tal irmão e filho: Nosso Senhor Jesus Cristo” (1CF I,10-13).

 

  • E lhe porás o nome de Jesus

O anjo diz, também, a Maria, o nome que ela deveria dar ao menino: Iéshoua (Jesus). Este nome quer dizer: Iahweh salva. Salvar não é só livrar do perigo, pôr a salvo, no sentido de pôr no seguro. Salvar é também conduzir alguma coisa ao seu vigor essencial. É tornar são, isto é, curar, no sentido de restituir a saúde, o vigor originário da vida. Salvar é ser como médico que se empenha todo em guardar, proteger, conservar e preservar o vigor originário da vida; é não permitir que a vida se corrompa. E, mais do que isso, é cuidar para que a vida encontre a plenitude de seu vigor essencial. Por isso, Beda diz que o nome Jesus quer dizer “Salvador”, ou ainda, “O saudável”. Nele, o vigor da saúde, que vem de Deus, se comunica, para tornar saudável, como ele, todo o homem, toda a criatura do universo.

Os primeiros cristãos forjaram a partir daí o anagrama “Ichtys”, que significa “peixe”, mas que transpõe numa palavra toda uma frase, que diz: “Iesous Christos Theou Yuios Soter” (Jesus Cristo, filho de Deus salvador). Por este nome sabemos como Deus quer ser para nós, conosco: quer ser o Salvador. Este nome próprio – que resume toda a vida e o destino do Menino – dá uma fisionomia humana singular ao nome próprio de Deus revelado a Moisés – Iahweh (Eu sou Aquele que sou). Deus é conosco e é conosco como Aquele que salva não a partir de fora, mas de dentro de nossa vida, de nossa história, de nossas angústias e de nosso pecado.

São Boaventura testemunha que São Francisco sempre que ouvia o nome “Jesus” passava a língua nos lábios como quem saboreasse um favo de mel (Cf. LM 10,6). Já, Tomás de Celano faz o seguinte relato: “Estava todos os dias e a toda hora falando sobre Jesus. E como seu jeito de falar era doce, suave, bondoso e cheio de amor! Falava da abundância do coração, e estava sempre transbordando a fonte de amor iluminado que lhe enchia todo o interior. Tinha Jesus de muitos modos: levava sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros… Também foram muitas as vezes em que estava viajando e, pensando em Jesus ou cantando para ele, esquecia-se do caminho e convidava todas as criaturas a louvarem a Jesus” (1C 115).

 

  • E Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo

O anjo prossegue com o anúncio: “Ele será grande e será chamado Bèn Élion – Filho do Altíssimo”. A ele ninguém se compara. Sua grandeza se estende por todo o universo e a sobrepuja. Se estende dos mais altos céus aos mais profundos abismos. Não se trata, aqui, da grandeza dos poderosos deste mundo, mas daquela que nasce da simplicidade e da humildade.

O anjo, se antes dissera a Maria que ela devia dar ao seu filho o nome de Jesus, agora, ele diz que este seu filho “será chamado filho do Altíssimo” pelo próprio Deus. E o anjo prossegue: “O Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a família de Jacó, e o seu reino não terá fim”. Isto é: o filho de Maria seria o Messias anunciado previamente pelos profetas. O seu reino seria indissolúvel, eterno.

Ora, em nenhum dos reis da dinastia davídica estas palavras se realizaram. Só quando o “filho do Altíssimo” não é um simples homem, mas sim o Deus humanado, o Filho bem-amado do Pai ele mesmo, é que a profecia pode se realizar de fato. Em seu reino eterno é que todas as coisas alcançarão a sua consumação (Cf. 1 Cor 15).

 

 

4.9. A grande pergunta

Segue, então, a famosa pergunta de Maria: “Como se fará isso, visto que não conheço homem?”. Uma pergunta bem diferente daquela de Zacarias. Enquanto a resposta de Zacarias, perguntando “Como terei certeza disso? Já sou velho e minha mulher é de idade avançada” (Lc 1,18) revela desconfiança e até certo menosprezo, a pergunta de Maria revela humildade, confiança, fé. Ela deseja compreender o mistério que está lhe advindo a fim de poder cooperar com ele. Por isso pergunta “Como se fará isso?”.

Inicia-se assim, uma admirável e benfazeja cooperação entre os dois, Maria e Deus, que jamais terminará, vindo a ser declarada, mais tarde, pela Igreja, como redentora ao lado, junto de Jesus: co-redentora. Por isso, o anjo declara: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; e por isso aquele que vai nascer será santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1, 35). Teofilato vê, aqui, a ação da Santíssima Trindade: o Altíssimo, o seu Poder (Filho) e o Espírito Santo. 

 

4.10. A Deus tudo é possível

Frente à perplexidade de Maria, o anjo lhe concede um sinal: “E eis que Elisabete, tua parenta, está também para dar à luz um filho em sua velhice e já está no sexto mês, ela que era chamada estéril, pois nada é impossível a Deus” (Lc 1, 36-37). O nome “Elisabete” (Isabel) evoca o nome da esposa de Aarão: Elisheba (Gn 6, 23). Assim, na história de Maria e de Elisabete (Isabel) se entrelaçam as tradições régia e sacerdotal através das quais foi transmitida de geração em geração a esperança do Messias. A gravidez miraculosa de Elisabete é indicada pelo anjo como um sinal do poder de Deus para realizar a sua vontade salvífica. A Deus tudo é possível. Ele é o Senhor da natureza, o Senhor da vida. Por seu poder e bondade, uma mulher anciã pode engravidar; uma mulher estéril também o pode; e, do mesmo modo, uma mulher virgem.

O milagre não diz respeito a Deus, mas à nossa visão habitual sobre as coisas da natureza. Pois, para Ele, que do nada criou todas as coisas, isso não é difícil. Mestre Eckhart dizia: “Pois a Deus, é tão fácil everter céu e terra como o é a mim virar uma maçã na minha mão”[9].

 

4.11. Eis aqui a serva do Senhor

O texto termina com as palavras de Maria e a modo de um “gran finale”: “Eis aqui a serva do Senhor. Que me aconteça segundo a tua palavra!”.

“Serva do Senhor”: um título de humildade e, ao mesmo tempo, de glória, grandeza. A glória de Maria está, com efeito, na sua humildade. Com efeito, é sua humildade que a credencia para entrar e estar e permanecer no serviço do Altíssimo, o Grande Rei. Ela devia dar à luz ao Humilde: o Máximo, que se fez Mínimo; o maior que se fez o menor; o Filho de Deus, que se fez filho do homem, e que sendo Senhor do universo assumiu a condição de servo de tudo e de todos. Chamando-se a si mesma de serva, diz Santo Ambrósio, Maria não se apropriava da graça especial que lhe fora concedida. É na humildade e na pobreza (desprendimento, não apropriação da graça), que ela se põe à disposição do desígnio divino, do Mistério, que estava silenciado, encoberto, e que agora começava a se manifestar. A grandeza de Maria está na sua humildade e na sua disposição a deixar vir a cumprimento as palavras do Senhor. Sua grandeza está no “Faça-se” (Fiat).

Com o humilde sim de Maria ao anjo – que a saudou como “plena de graça” e lhe anunciou o mistério da encarnação do Filho do Altíssimo e a dádiva de sua participação nele pela maternidade – deu-se abertura à obra da redenção de toda a humanidade e, por conseguinte, também de toda a criatura.

 

Conclusão

Podemos chamar este Domingo não apenas o decisivo “Domingo do Sim de Maria”, mas também, do nosso SIM”. Um sim que expressa a alegria, o desejo e a decisão de permitir a Deus que realize também em nossa alma o milagre da concepção e da encarnação do seu Filho querido. Pois ser cristão é ser cristóforo (portador de Cristo).

Mas, para isso precisamos percorrer o caminho inaugurado por ele e vivido por Maria: olhar para baixo, para nossa pequenez, nossa “creaturalidade”, nosso pecado, sair de nós mesmos, descer para o meio dos pequenos, pobres, abandonados, doentes e pecadores. Pois, como diz São Francisco: “Esta Palavra do Pai, tão digna, tão santa e gloriosa, o altíssimo Pai anunciou do Céu, por meio do seu santo anjo Gabriel, no útero da Santa e gloriosa Virgem Maria, de cujo útero recebeu a verdadeira carne de nossa humanidade e fragilidade. Sendo rico, acima de todas as coisas, Ele mesmo, juntamente com a beatíssima Virgem Maria, sua Mãe, quis no mundo escolher a pobreza como caminho” (2CF 4-5).

 

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

 

 

[1] O nome “Maria” vem do grego Μαρίας. O nome do Novo Testamento foi baseado em seu nome original em aramaico Maryām. Ambos, Μαρίας e Μαριάμ, aparecem no Novo Testamento.

[2] Este era o nome da irmã de Moisés (Cf. Nm 26, 59).

 

[3] Sermões Alemães, n. 38, p. 227.

[4] Idem, p. 228.

[5] Ibidem.

[6] Idem, p. 229.

[7] Idem, p. 230.

[8] “O Senhor está contigo”, é uma expressão que aparece com frequência ligada aos relatos de vocação no Antigo Testamento (Cf. Ex 3,12 – vocação de Moisés; Jz 6,12 – vocação de Gedeão; Jer 1,8.19 – vocação de Jeremias) e que serve para assegurar ao “chamado” a assistência de Deus na missão que lhe é pedida.

[9] Sermões Alemães, n. 38, p. 228.